quarta-feira, 9 de março de 2011

Sobre nossas referências.

As referências são importantes. Fiquei aqui pensando sobre um episódio que me ocorreu essa semana. Fui comprar uns dvds na banquinha faça-você-mesmo (camelô) perto da casa dos meus pais para curtir o início do carnaval com chuva. A esbórnia mesmo começou domingo pra mim... Acontece que na mega promoção "1 é 3 e 4 é 10" a gentil garota confundiu-se com o troco e me deu uma nota errada. Conferi e devolvi o que estava sobrando. Ela e um homem que estavam conversando pararam de falar e ficaram eufóricos com isso dizendo ser uma atitude rara e louvável. Ela queria até mesmo oferecer um dvd de brinde! Recusei. Não por orgulho ou coisa parecida. Agradeci e respondi que era apenas o óbvio a ser feito, que não tinha problema, que nada mais coerente do que fazer aquilo por considerar um príncipio justo e de respeito pelo trabalho dela. Conversando com meus pais sobre algo parecido contei a eles a história e ficamos lembrando de alguns outros episódios. Meu pai me lembrou de quando eu deveia ter uns 7 anos e estava com ele no mercadinho do bairro quando resolvi "faturar" uns chicletes. Quando estavamos saindo do mercado meu pai me olhou e disse: "o que você tem ai? Vamos voltar, você vai devolver e se desculpar". Apenas isso. Depois no caminho ele me disse que aquilo era algo muito errado e que eu sabia disso. Que não voltasse acontecer. E não aconteceu. Meu pai não é uma pessoa de falar muito e presa pela objetividade e o olhar como elementos para uma conversa sincera. Foram raras as vezes que precisou me bater por alguma traquinagem. Com o tempo fui aprendendo a diferença entre o Seu Zé do butiquim, o Joaquim do mercadinho e o Abílio Diniz. E depois que os anarquistas elaboraram tão bem a noção da prática da expropriação e da propriedade privada, nunca mais mesmo tentei pegar algo do Seu Zé. Falo sobre isso para evitar os moralismos do "homem de bem" e do pequeno burguês que aposta no "enobrecimento do trabalho". O trabalho pode sim acrescentar valores importantes, mas também desagregar e alienar. Quem não se lembra dos Tempos Modernos de Chaplin, A Metamorfose do Kafka ou ainda os empregos de merda que temos durante nossas vidas? Entretanto nos interessa aqui o tema da referência. Meu pai em sua simplicidade diz que você não deve pegar o que não é seu e deve respeitar as atividades dos outros. A referência que terei de meus pais é exatamente essa: não seja um mané pensando que esta sendo esperto, assim como não seja trouxa ou palhaço de ninguém. Fico aqui com meus botões e o que mais tenho encontrado é gente trouxa. Babaca que pensa estar sendo malandro (o que tem de malandragem "ganhar" 10 reais no engano do trabalhador?); e por outro lado, também idiotas que admiram por exemplo o Abilio Diniz que com sua super-mega-bem-sucedida-rede-de-supermercados que está fodendo o Seu Zé sendo idolatrado como exemplo a ser seguido. Percebem a diferença? Certa vez me perguntaram se eu tinha preconceito com pessoas muito ricas. Fiquei pensando e acho que não. Tenho lá minhas questões com grana como quase todo mundo, mas nesse caso é conceito mesmo. Não consigo admirar o Diniz e pensar que ele realiza algum bem ao meu povo e a minha cultura. Minha admiração é pela gente simples e que busca com o pouco fazer muito. Claro que dinheiro não revela o caráter de ninguém, mas as análises do tio Marx (que não foi nenhum miserável) sobre alienação, mais-valia, propriedade privada e etc continuam atuais. Sendo assim não dá pra pensar nesses senhor como exemplo de dedicação e "empreendedorismo" a serviço do povo brasileiro. "Orgulho de ser brasileira"? Conta outra. Sei também que falar dessas coisas assim soa bem panfletário, mas caso não questionemos os modelos de referência de nossa cultura, não nos resta muito o que fazer. Fico aqui pensando em como dizer sem parecer o aluno do fundão que não consegue tirar uma boa nota e está sempre detonando os cdfs da primeira fila por isso... Primeiro que já fui aluno dos dois lugares. E sim o fundão é muio mais divertido e apesar de já ter tirado algumas boas notas, elas não são o que mais importa. Depois que é exatamente isso que querem que pensemos: uma hora vamos sair do fundão para ser o primeiro da classe. O problema é justamente aí: só tem um primeiro lugar. Realmente nos faltam referências melhores. Fico imaginando uma conversa desse homem com seus filhos sobre como adiministrar suas fortunas e realmente não posso achar que valores sobre igualdade e liberdade estejam presentes. Como acreditar que igualdade e liberdade são importantes a todos sendo um milionário? Não dá. É como querer pular no rio e não se molhar. A alguns anos atrás vi um palestra de um indiano convidado para falar sobre Gandhi em uma homenagem a ele em São Paulo. O auditório do MAM estava lotado, principalmente pela classe média paulistana que adora o tema da não-violência desde que não tenha que por a mão no bolso... Lá pelas tantos o Sr. Y, que não me lembro o nome, desembestou a falar sobre o direito a herança. Falava que isso era uma questão importante pois possibilitava não apenas um acúmulo de bens materiais, mas de privilégios. Gandhi disse certa vez que "todo aquele que possui coisas da qual não necessita é um ladrão". Para Mohandas a herança tem o mesmo sentido que as castas. Algo a ser eliminado. Foi como um cruzado de direta naquela platéia! As pessoas começaram a levantar e ir embora! Isso pra mim foi chocante e comecei a entender melhor a psicologia da classe média e da elite paulistana, mas principalmente os que são donos de muitos bens materiais. Por favor, não me interpretem mal, não se trata de julgar indivíduos, mas de considerar as referências que mantém essa maneira de se organizar. O próprio Abilio Diniz fez sua fortuna "quase sozinho", sendo filho de imigrantes portugueses e tendo sua primeira padaria com muita dificuldade. Nunca o vi e nem o conheço para ter algo pessoal contra ele. O fato é que não existem fortunas que não sejam provenientes de saques, exploração e muito sofrimento alheio. Outro exemplo disso é que nunca encontrei alguém da classe média e acima dela falar a respeito de seus privilégios. Você acredita que existem privilégios de homens sobre mulheres? De brancos sobre negros? De ricos sobre não ricos? Claro que não, certo?! Lei Maria da Penha, políticas de cotas nas universidades, taxação sobre fortunas? Isso é coisa de gente vagabunda e aproveitadora que não quer trabalhar! Vejamos. Essa gente adora pagar pau para gringos e europeus. Falam da sua "civilidade" e educação, mas ignoram que lá já teve muita revolução, que a reforma agrária já aconteceu a um século, que sua prosperidade material é mantida graças ao sangue dos "incivilizados" daqui e que até lá as fortunas precisam pagar mais para existirem, e por ai vai. Já por aqui... Acreditamos e admiramos quem e por quê? Pelo amor de Deus, não me diga que é porque fulaninho chegou aqui sem nada e lutou tanto e agora é rico, é alguém na vida... Minha familia também chegou aqui sem nada, foi sequestrada, violentada, lutou tanto e continua quase sem nada. O que aconteceu? Não são ninguém na vida? Já sei, você vai responsabiliza-la por sua condição. Eu já vi esse filme. Porém não estamos aqui pra lamentar. Consegui ir para uma universidade, fazer uma pó-graduação e estar com algumas possibilidades melhores para minha vida do que meus pais obtiveram na deles. Sinal de que as coisas podem mudar. Não fiz iudo sozinho, não foi apenas minha determinação e etc, mas o empenho e o apoio de minha família que também contribuiu para isso. Gostaria de agradecer meus pais então, gente simples e que tiveram alguma ascensão social depois de algumas décadas, por me ajudarem principalmente, a não ser mais um trouxa. Fico feliz por aprender algo sobre o respeito, a dignidade e o trabalho com minha família. Eu admiro vocês.

2 comentários:

Anônimo disse...

http://www1.folha.uol.com.br/mercado/887215-heranca-e-origem-da-fortuna-de-50-dos-bilionarios-do-brasil.shtml

untitled disse...

Para as suas referências, as minhas reverências. Reverência ao Pai e ao Filho.