sexta-feira, 11 de março de 2011

A morte do “bispo dos indígenas”: a sua lição permanece.

por Guga Dorea

"No EZLN, militam pessoas com diferentes credos e sem crença religiosa alguma, porém, a estatura humana desse homem (a de quem, como ele, caminha do lado dos oprimidos, dos despojados, dos reprimidos, dos depreciados), chama a nossa palavra". Esse é apenas um pequeno trecho da homenagem proferida pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional à Dom Samuel Ruiz. Bispo emérito de San Cristóbal de Las Casas, Chiapas, México, diocese que dirigiu entre 1960 e 2000, D. Samuel faleceu no dia 24 de janeiro de 2011 por complicações relacionadas à hipertensão e diabete.

Conheci o bispo Samuel Ruiz quando estive em Chiapas entre 1994 e 1995, época em que estava se completando um ano da guerra-relâmpago deflagrada pelos zapatistas, no início de 94, por liberdade, dignidade e justiça. Por conta de um pequeno mas inesquecível encontro, optei por escrever esse texto, em sua homenagem, compartilhando algumas impressões que ficaram em mim do México encontrado nessa instigante viagem. No dia 1º de dezembro, alguns dias antes da chegada de nosso grupo de jornalistas, já sabia que o EZLN havia rompido a trégua com o governo e ocupado 38 dos 111 municípios de Chiapas.

Encontrei um país à beira de mais uma guerra sangrenta. Os zapatistas, que haviam declarado os municípios ocupados como "autônomos e rebeldes", exigiram a intermediação de D. Samuel no desejo que tinham em retomar o diálogo com o governo federal. Como resultado da pressão zapatista, foi criado, no dia 20 de dezembro, a Comissão Nacional de Intermediação (CONAI), que se tornou o principal elo de negociação entre zapatistas e governo, tendo ele como seu principal representante.

Desembarcamos na Cidade do México no dia 23 de dezembro de 1994. Dois dias depois, D. Samuel se encontrou com o subsecretário do governo para tentar chegar a um acordo de paz. Não teve sucesso. O EZLN estava encurralado pelo exército mexicano, que desde o dia 21 de dezembro já havia bloqueado a entrada e saída das pessoas na selva Lacandona, incluindo jornalistas. O governo não queria ceder em nenhum ponto e os zapatistas estavam em um angustiante silêncio.

Seguimos então viagem para a cidade de San Cristóbal de Las Casas, em Chiapas. A viagem de Tuxtla, considerada a cidade comercial mais importante do sul do México, para San Cristóbal, durou aproximadamente três horas. Já era possível observar sinais do conflito por toda parte. Além das frases pró-zapatismo escritas nas montanhas, havia tanques de guerra do exército mexicano, desfilando soberbamente pela sinuosa estrada que ligava as duas cidades. Logo na entrada de San Cristóbal, a primeira revista por parte do exército mexicano. Era preciso mostrar documentos. Logo foi possível perceber que jornalistas não eram bem vindos.

Depois de nos hospedarmos em um simpático hotel, cujo nome era Margarita, caminhamos o mais depressa possível para a igreja matriz da cidade, pois lá estava concentrada a imprensa mundial. Logo ficamos sabendo que haveria uma coletiva para o final da tarde e nos preparamos a fim de participar dela. Foi o nosso primeiro contato, não só com o que realmente acontecia em Chiapas, mas também com a energia conspiradora do bispo Samuel Ruiz.

Em San Cristóbal, era impossível respirar outra coisa que não a política, a ação política mesclada com o discurso, ou, melhor dizendo, a praticidade política transformada em discurso. Foi fácil verificar que, apesar dos pressupostos ideológicos que possam ter influenciado o EZLN, não foi o discurso a mola-mestra do surgimento de uma guerrilha, que não deseja o poder e sim transformação, em pleno final do século XX.

Apesar das ameaças do governo em proibir a passagem de jornalistas e simpatizantes para a Selva Lacandona, programou-se uma caravana de solidariedade na qual fizemos questão de estar presentes. Logo na saída de San Cristóbal, nos deparamos com uma pequena barreira. Estrategicamente, alguns soldados mexicanos apontavam metralhadores para os carros e transeuntes que tentavam passar. A posição era de guerra. Pequenas barricadas de lona haviam sido armadas na saída da cidade e os soldados, deitados em uma postura horizontal, apontavam armas para todos que passavam. Havia ainda soldados que interrompiam o trânsito para identificar as pessoas. Fomos obrigados a mostrar documentos, além de sermos hostilizados a todo instante.

Ultrapassada essa primeira barreira, iniciamos então o caminho para a selva. Durante o percurso, a caravana cruzou com alguns tanques do exército, com homens fortemente armados. Muitos soldados eram jovens, para não dizer crianças. Seguimos o percurso por uma estreita e sinuosa estrada de terra, cheia de curvas inesperadas e de labirintos sem direção, chegando um momento em que alguns carros modificaram sem premeditação o trajeto programado. Entramos em um vilarejo no qual não me lembro o nome e encontramos soldados mexicanos que não gostaram de nossa presença no local. Eles eram bem jovens e desfilavam soberanos com metralhadores K-900 nas mãos. De vez em quando as apontavam para nós, com a nítida intenção de medir forças.

Os soldados estavam em posturas estratégicas para que não tivéssemos contato direto com a população local, que saiu timidamente de suas casas para ver a caravana passar. O objetivo era o de intimidar a população e afastá-la, na medida do possível, dos zapatistas. Conseguimos conversar com alguns moradores que, sem dizer o nome, reclamavam de cotidianas torturas e estupros por parte dos soldados.

Continuamos a viagem e poucos quilômetros depois enfrentamos a primeira grande tensão: a principal barreira do exército mexicano antes de adentrarmos definitivamente nos "municípios rebeldes". Já era bem noite e não havia sequer estrelas para que pudéssemos caminhar com mais precisão. Eram aproximadamente uns 40 carros, com jornalistas e observadores estrangeiros, além de alguns caminhões com mantimentos para serem entregues aos zapatistas.

Em função disso, as horas não passavam, ainda mais que os soldados trataram de revistar um por um cautelosamente. A noite era tão sombria que eles utilizaram lanternas para manusear nossos passaportes e documentos profissionais. Durante as revistas, um caminhão com metralhadoras passeava pela estrada sem asfalto, tentando mostrar a força do exército mexicano no sentido de nos intimidar. Depois de horas de tensão veio a notícia de que poderíamos passar.

Alguns quilômetros depois, encontramos a barreira zapatista que também interrompia o trajeto. Nesse momento, observei o quanto o exército mexicano estava habilmente próximo dos zapatistas. A proximidade de ambos os bloqueios mostrava o quanto a guerra era iminente. Poucos quilômetros à frente, chegamos a um grande balcão, onde eles estavam à espreita aguardando o tão esperado mantimento.

De volta à rotina jornalística dos acontecimentos em San Cristóbal, as notícias eram as mesmas. Apesar da insegurança, uma nova caravana foi organizada para a passagem do ano. Saída: dia 31 de dezembro bem cedo. Entramos finalmente em Guadalupe Tepeyaque. Depois de mais uma semana de silêncio, o EZLN iria se manifestar.

"Não nos rendemos, não nos vendemos. Estamos outra vez a postos para responder ao inimigo. Porém, queremos dizer que hoje não é novamente o governo que nos impedirá de tomar a iniciativa das armas; não é o medo da morte; não é o medo da guerra. É o chamado da sociedade civil. Estamos escutando a palavra da sociedade civil. Estamos dispostos novamente a um novo diálogo para que o governo responda às necessidades de nosso povo. Se a guerra não é necessária, pois que não a seja. Porém que cumpram as demandas pelas quais todos nós estamos em armas. Vamos dialogar mais uma vez. Porém não entregaremos as armas. É a nossa garantia de paz".

Com essas palavras, o major Moisés deixou claro que os zapatistas queriam ser escutados. Foi aí que ele anunciou a não presença do subcomandante Marcos, que estava sendo perseguido pelo governo mexicano. No entanto, Moisés ligou um gravador e a voz forte do subcomandante lançou a III Declaração da Selva Lacandona. No final, foi decretada trégua até o dia 6 seguinte, e os zapatistas pediram esforços para que o diálogo voltasse a acontecer.

Já de volta a San Cristóbal, chegavam notícias a todo instante de pequenos e esparsos conflitos entre o exército ou capangas a serviço dos grandes fazendeiros com camponeses. D. Samuel Ruiz, em jejum pela paz, reza uma missa pedindo o retorno das negociações. "Chiapas não é Chiapas. É um quartel general", disse ele durante a cerimônia.

Depois dessa fala impactante, optei por tentar conhecê-lo pessoalmente. Após muitas tentativas, acabei conseguindo um encontro no interior da Igreja de Guadalupe, em San Cristóbal. O encontro foi mágico. Ele próprio me disse que quando chegou ao estado de Chiapas, em 1959, não era integrante da ala progressista da Igreja Católica. Pelo contrário, era um sacerdote tradicionalista. De perfil conservador, estava preparado para formar sacerdotes e evangelizar os indígenas. Segundo ele mesmo, a mudança de sua postura só aconteceu após encontros com o contexto social local, quando aderiu à luta dos padres progressistas pelo fim do lento extermínio dos indígenas.

Na prática, é possível afirmar que D. Samuel abriu seus horizontes existenciais a partir de dois encontros históricos e culturais, no que pensadores da filosofia da diferença chamam de devir outro. Sempre aberto ao princípio da escuta, o outro fez a diferença em seu modo de ser e de conceber a vida. Para ele, a diferença jamais esteve no outro, no concebido negativamente como o "diferente", se comparado a um modelo fictício de perfeição. Foram basicamente dois bons encontros, como diria Espinosa, que o tornaram diferente de si mesmo.

O primeiro foi com a realidade sócio-econômica e política dos indígenas chiapanecos. O outro, talvez o mais importante, foi o seu encontro com a cultura indígena. Ele se metamorfoseou em devir índio, que passou a fazer parte de seu existir. Não se trata de se transformar em índio, mas de não falar mais em nome dele. D. Samuel passou a falar a partir do modo de ser indígena e a sua forma de conceber a existência mudou.

Nós, da cultura ocidental, precisamos nos abrir a outros mundos possíveis para, como diriam os próprios zapatistas, sermos capazes de conceber um mundo onde caibam todos os mundos. D. Samuel nos mostrou ainda que podemos aprender a escutar o outro, rompendo fronteiras com identidades fechadas e intransponíveis, que só conseguem olhar para o outro estabelecendo lutas de verdades contra verdades. Somos todos zapatistas e não somos ao mesmo tempo. Esse foi o legado deixado por D. Samuel. O eu e o outro, nesse contexto, se misturam, o que significa redimensionar conceitos petrificados do que é ser igual e diferente na sociedade contemporânea.

Guga Dorea é jornalista e cientista político. Atualmente atua no projeto Xojobil e escreve para a revista Incluir.

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