segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Sayonara Japao.


Estou partindo do Japão. Depois de tanto tempo tentando chegar, cheguei e agora me vou. Depois de outro tempo tentando ficar, não estarei. Seria bom ficar um pouco mais, entretanto alguns me dizeram que não seria possível. Fiquei pensando sobre minhas intenções a respeito de meu tempo no Japão. Imaginei como poderia ser a vida agora que estou aqui. Lembrei de quase todas as vezes que desejei chegar. Agora me dou conta de uma partida não esperada. As vezes o esforço parece não ser suficiente. Lembro de muitas vezes escutar algo assim, mas confesso que nunca tinha sentido isso de maneira tão nítida. Engraçado como o tempo todo e em cada gesto para atender não apenas as burocracias do Estado, mas também para chegar perto de algumas pessoas e de alguns lugares, a gente precisa provar que não é culpado. Muitas vezes a sensação é de alguém dizendo: “você esta errado!” Mas puxo pela memória e não consigo saber do quê! Não sei porque isso não passa e tudo caminha para mostrar exatamente o oposto. Eu não fiz nada de errado, não faço e nem pretendo fazer, então porque tanta desconfiança? Tá legal, ordens são ordens e vocês não tem que ficar pensando sobre essas coisas. E reconheço que errei em alguns lugares e com algumas pessoas, mas não mais do que qualquer outro. Eu não sou um criminoso desgraçado! Aí você me diz que é assim mesmo. Não, eu não acho que seja assim mesmo. Depois ainda me perguntam o que eu posso fazer. Não da pra mudar isso? “Tem que aceitar e ir embora”. Não meu caro, eu não aceito isso. Eu não reconheço essa autoridade. Eles nem se deram ao trabalho de perguntar de onde vim e porque fiquei... Apenas me disseram que deveria ir embora. “O seu prazo termina em um mês. Assine os papéis!” Tentei argumentar mas não adiantou, ordens são ordens. Aí aparecem outras pessoas dizendo que lamentam muito, principalmente porque muitos acabam pagando por alguns poucos. É verdade, eu sei e me dizem isso com a melhor das intençõs. AH! Estou cansado, mas não para dizer que eu aceito. Eu tenho um nome, não sou apenas “os outros”. Eu tenho minha história, minha caminhada e meus sonhos. Eu não aceito mesmo! Sempre ouvi dizer que somos inocentes até que se prove o contrário, mas hoje não é bem assim. Nas fronteiras não é assim. Seja na América Latina, no hemisfério norte, no ártico ou em alguma ilha perdida no sul. Não apenas seus olhos, mirando de dentro daquele lugar tão sufocante que fica o posto da imigracao, por de trás do balcão, mas é seu corpo inteiro dizendo: “eu sei que você esta errado, estou aqui apenas pra descobrir onde”. Isso me fez lembrar das inúmeras “gerais”, vulgo revista padrão, que levei da nossa tão gentil polícia militar do Estado de São Paulo. Um dia me pararam quase na porta de casa. Quatro homens armados até os dentes apontam suas armas e dizem para mim ir bem devagar até a parede, colocar as mãos na cabeça, abrir as pernas e com muito “cuidado”, tocam em mim a procura de... (do que mesmo, hein?) Eu disse que não precisava nada daquilo, moro a duas casas dalí! O policial apenas disse: “fique quieto que estou fazendo meu trabalho. Como eu posso saber que você é um cidadão de bem?” Cidadão de bem? Exatamente senhor policial, como você pode saber? Então, você parte do pressuposto que eu não sou e me trata assim? Novamente vozes dizem que é isso mesmo. Insisto: eu ainda não aceito! Fronteiras entre países ou nas ruas da minha cidade, qual a diferença? Um braço armado me condena sem mesmo imaginar de onde venho. Que triste isso... Ainda vão existir aqueles que tentaram argumentar que não da pra viver sem essas coisas, o mundo é mal, existem muitos seres terriveis que precisam ser contidos, e eles (policiais e fronteiras) estão aqui para nos proteger. Que pena mesmo! Eu não tenho essa escolha, certo? A escolha de dizer que não quero fronteiras e nem policiais apontando armas para minha cabeça dizendo que esse é seu trabalho e que isso me protege? Tenho? Fala aí? Sim, eu continuo não aceitando! Agora as autoridades do governo do Japão dizem que eu não posso ficar aqui, mas eu pergunto para eles e comunico que fiz tudo que me disseram - trouxe todos os papéis - porque isso não serve? Afinal de contas, porque somente depois de meses e meses, esperando, cumprindo suas leis, me dizem que isso tudo não serve? Eu ainda lembro de seus olhos senhor oficial da imigração me acusando de não sei o que e dizendo para mim assinar logo porque você não queria perder 5 minutos de seu almoço. Você nem se deu o trabalho de esperar eu ler o que aquele maldito documento dizia! O senhor nunca ouviu falar que devesse ler antes de assinar um documento? Mas você apenas repetia “Assine logo! Assine logo!” Eu lembro da sua pouco disponibilidade para me explicar o que deu errado. Apenas falava que as leis mudaram sem me dizer o que foi que mudou! Estava ali pra cumprir suas ordens, certo? Eu cumpri suas leis, mas mesmo assim não foi suficiente. Diga-me então o quanto é suficiente? Conheci muita gente que esta em terras niponicas e apesar dos pesares tenta entender e colaborar. Por exemplo, quando na fábrica a produção esta atrasada e o chefe diz que precisa contar com o apoio de todos pela bem geral, que todos precisam trabalhar um pouco mais. Esse sacrificio é para o bem de todos, certo? Tá legal, a maioria já trabalha 14 horas diárias, o que serão mais 2 ou 3 horas? Vamos lá, pelo bem de todos, né?! Eu só não vi ninguém falando que cuidar dos filhos um pouco mais era para o bem de todos. Eu só não vi ninguém perguntar se dá pra garantir os direitos trabalhistas pelo bem de todos. Eu também não vi nenhum chefe elogiar a mãe que teve que ficar em casa porque o filho estava doente. Ah, entendi... A gente se esquece que brasileiro é malandro e provavelmente isso é uma desculpa para não trabalhar, afinal de contas nós viemos lá do outro lado do mundo só para atrapalhar a vida de vocês. Ainda não perceberam isso? Provavelmente o senhor inspetor da imigração conhece essas histórias e deve imaginar que eu vim aqui pilhar seu país, não é isso que todos os imigrantes fazem? Opa! Desculpe, não é pilhar, é saquear, aproveitar o trabalho suado de vocês, estou certo? Claro que os países que fazem parte do chamado G8 nunca se comportaram assim. Eles são ricos porque são trabalhadores honestos. O extermínio dos povos originários das Américas, África, Ásia e de todo o restante do mundo é mero detalhe. O G8 nunca saqueou ninguém. São governos de homens integros e honrados, estou certo nisso também? Nós, viajantes do hemisfério sul, habitantes de terras não tão prósperas é que somos bárbaros e de um modo geral não sabemos nos comportar. Quer saber de uma coisa? Talvez senhor oficial inspetor da imigração, deveria te agradecer por me mandar embora daqui. Talvez você esteja me fazendo um favor e eu como sou um mal agradecido não consigo enxergar. Eu entendi, estou indo. Não empurra não! Mas antes deixa eu te falar um coisa, algo que talvez em alguma outra situação posso te fazer pensar e quem sabe avaliar de outro modo. Eu gostaria de dizer que tudo isso que escrevo é apenas orgulho ferido, desapontamento ou algum tipo de frustração, mas juro que não é. Até tem um pouco disso sim, mas nem dá pra dizer o quanto... Tem é uma coisa maior. A minha não aceitação é cheia de dor porque não é passiva e eu tenho certeza que é isso que vocês mais querem de mim: passividade e apatia. Mais do que qualquer outra coisa, não apenas o governo de vocês aqui, mas todos os que existiram e ainda existem por esse mundo querem isso: o rebanho, a mentalidade bovina. Querem a obediência de seus fiéis súditos. E isso meus quase caros amigos, nunca teram de minha parte. Eu não posso fazer nada agora além de ir embora, certo? Não, eu posso escrever, posso falar, posso sabotar isso de muitas formas, posso viver sem sofrer da sua normalidade e de seu egoismo. Já diziam por aí que a normose e a egoescleroso atinge multidões . Não duvido disso! Agora eu irei partir e talvez volte, ou não. Seu Estado é medicoridade. Eu não! Seu julgamento e preconceito de algo ruim que eu tenha feito (?) não me causa culpa. Eu vou porque você tem medo, porque você não reconhece a verdadeira liberdade de um ser humano andar por esse planeta. Talvez nunca tenham pensado sobre isso, mas essa é a minha casa! Você me expulsa do Japão, mas tem um detalhe seu idiota: eu vivo nesse planeta e daqui você não pode me tirar. Usa sua força para me obrigar a sair dessas terras que não são suas. O Japao não 'e uma propriedade privada, mesmo que voces tentem. Eu conheço os Ainus. Conheço o povo que vive aqui antes de você e de seu Estado. Eles é que sempre souberam cuidar bem desse lugar e agora estão confinados na ilha do norte. Seu país não é seu e nem o meu é meu. Eu amo minha cultura e minhas tradições. Sei bem de onde vieram e quem foram os negros, índios e brancos que estão em meu sangue, mas isso nada tem haver com as fronteiras do Estado. O negros todos que foram sequestrados da África e que vieram a formar meu povo não trouxeram o Estado e seus soldados. Vieram de lá povos que guardaram dentro de si sua religião, sua língua, sua arte, seu ritmo! Essa é a diferença de soldados e guerreiros. Soldados obedecem ordens. Guerreiros lutam sempre. Lutam não para dominar alguém como soldados que aceitam sua hierarquia sem questionar. Guerreiros conquistam a si mesmo e nunca param de ir em frente. Sabe, eu vi para cá porque gostaria de entender melhor de coisas assim também. Você esta me vendo? Aprender e compartilhar. Ainda há muito para aprender! Eu as vezes não sei bem onde estou, me falta humildade e paciência para ser um guerreiro capaz de viver o bom combate, mas meus avós negros e índios podem me ajudar. Eles conseguiram isso. Será que vocês que estão nas fronteiras não podem saber disso também? Esqueci que vocês são soldados que obedecem ordens, como podem saber? Digam que estou errado! Gostaria de entender como é que surge a arte nesse lugar, como vocês dançam e cantam. Eu não vim aqui pegar o que não é meu! Me mostra tua luta e reconhece a minha! Nossas lagrimas possuem o mesmo gosto. Vim andar por essas terras porque imaginava poder aprender outras coisas, compartilhar sabores e idéias. Eu só queria ficar aqui para depois dizer com um pouco mais de clareza que conheci vocês melhor. O que foi que aconteceu, não querem que eu os conheça? Não querem olhar para mim? Eu mesmo tento dar conta disso. Tem um monte de gente que quer sim. Eu vi e falei com pessoas bonitas daqui. Nós cantamos e dançamos juntos! Foi lindo e eu não lembro de ter que mostrar meu passaporte para isso acontecer. Não vou cometer o erro de dizer que governos são sinônimos de povos. Acho que o Brasil mesmo é um bom exemplo disso. Os governantes de lá a muito e muito tempo são um lixo e imprestaveis, mas eu nunca poderia achar isso de meu povo. Minha cultura é magnifica! Eu sei que a de vocês tem coisas assim também. Foi por isso que eu vim. Eu só gostaria de ver com meus olhos, então por que tantas portas fechadas? Por que vocês escondem as chaves? Mas não se preocupa porque eu não vou sair falando mal daqui por aí. Seria injusto. Tem coisas que eu aceito. Aceito muito!
Eu cantei e dancei com homens e mulheres daqui. Eu ri com pessoas lindas daqui! Pessoas que me disseram “senta aqui com a gente! Como você tá?” Como a obasan do mercadinho que sempre estava sorrindo. Sentirei falta dessas coisas. Também sentirei falta de correr no fim do dia entre os tanbos, de tocar meu berimbau nos jardins do castelo da cidade; de assitir novamente o hanabi; de ver tantas pessoas de yukata no verão; de comer milho doce e batata com manteiga no matsuri ou no bon-odori. Eu vou sentir falta de ver as crianças voltando sozinhas da escola em bando e levantando o braço para atravesar a rua; Também sentirei falta de entrar em alguma loja e perceber que esta tocando bossa nova. Você sabia que no Brasil isso quase não acontece? Geralmente é uma música bem ruim... Mas deixa eu te falar do que mais irei sentir falta. Eu gosto da minha sensei e das aulas de taiko. Agora é adeus sensei... Ela também não gostou de saber que vocês não querem que eu toque taiko com ela. Eu também gosto como muita gente se veste. Japanese fashion is great! E mesmo que eu não goste, existe autenticidade nisso. As vezes vocês exageram, mas isso é só minha opinião... Tem as bicicletas. As bicicletas! Nem dá para falar disso direito. Minha cidade precisa aprender tanto ainda. Muitas vezes quase fui atropelado e aqui todos pararam para mim. Vocês poderiam me mostrar como fazer isso, não? Mas agora talvez seja tarde... Ficarei com saudade de parar e sentar em algum banco na frente do jinja. Jogar uma moeda, balançar o gizo e pensar em meus ancestrais. Acho que você nem imagina que os seus Kamis parecem muito com os meus Orixás, nao é? Então, parecem mesmo. O sol, a lua, o mar, o vento, os elementos da natureza, tudo isso é compartilhado por um único arquétipo. Juro que é verdade! Não adianta fazer essa cara de desconfiado. África e Japão podem estar mais próximos do que imaginamos. Viu só como da para aceitar tantas coisas?
Mas agora eu tenho que ir. Sayonara Nihon.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Vegetarianismo no Japão


Ser vegetariano no Japão implica em um certo desafio. Saindo das maiores cidades japonesas a coisa fica bem complicada. Penso que é algo parecido com São Paulo e Rio. Um vegetariano que vive nesses lugares quando por exemplo, vai para o Mato Grosso sabe do que estou falando. Maior desafio ainda para quem vive em cidades no interior de estados mais afastados desse eixo.
Antes de chegar aqui imaginava que não seria tão difícil, afinal a maioria dos japoneses se diz budista, e minha experiência no Brasil com o budismo mostrava um certa sensibilidade com a questão da alimentação. Não que eu imaginava encontrar pessoas realmente praticantes da doutrina iniciada por Sidarta, sabia que ser budista aqui era como ser católico no Brasil, não significa muita coisa.
Porém pensava que haveriam outros hábitos alimentares que privilegiariam o vegetarianismo, mas estava enganado. Entretanto nem tudo esta perdido. Existe uma sociedade vegetariana japonesa que divulga eventos e sempre se pode buscar por algum restaurante perdido pela cidade que atenda sua urgência de comida sem sofrimento.
E para os brasileiros vai uma ótima noticia. Um povo que se conheceu em uma comunidade do orkut vem realizando encontros periódicos para troca de idéias, experiências, dicas de lojas e de produtos que você pode usar no Japão. O melhor entretanto tem ficado por conta das guloseimas que esse povo se propõe a cozinhar, como no caso do último encontro que rolou em Nagoya no mês de agosto. Um pic-nic foi realizado e cada vez mais pessoas tem aparecido. Esses encontros estão possibilitando brasileiros vegetarianos a não abrirem mão de seus princípios e também de poderem contar com apoio de um grupo de afinidade. Um novo ativismo vem surgindo e futuras intervenções para aumentar o acesso a informação e da urgência de uma nova dieta estão sendo pensadas para melhor alcançar a comunidade brasileira e japonesa. São pessoas encantadoras e o grupo esta sempre aberto para mais pessoas se aproximarem,
Aqui estão sugestões para quem vem ao Japão ou já está por aqui, mas se sente perdido nesse mar de sashimi e nikuya.
Por uma alimentação ética, sem crueldade, responsável, saudável, ambientamente sustentável e coerente. Pense nisso!

Comunidade no orkut de vegetarianos brasileiros no Japão:
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=6435760

Vídeo do 3º encontro de brasileiros vegetarianos no Japão:
http://www.youtube.com/watch?v=jnPU_Hf5m-0

Sociedade Vegetariana do Japão
http://www.jpvs.org/

Loja de produtos vegan em Nagoya:
http://www.karuna.co.jp/

Guia de restaurantes e lojas vegetariana/vegan de Tokyo:
http://www.vegetarian-restaurants.net/Asia/Japan.htlm




sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Encontro com o Monte Fuji


Foram mais de 30 horas acordado. Acredito que poderia fazer tudo novamente para ver o sol daquele lugar: o topo do monte Fuji. Subi seus 3.776m e tenho certeza de ter visto uma das coisas mais lindas do mundo.
Foi mais ou menos assim. Um querido amigo (Tomita san!) falou que iria subir. Convidou a mim e a Keiko para irmos juntos e não nos sobrou muitas opções além de dizer que iriamos com ele. Sai de casa às 12:30 de um dia de verão escaldante. Fazia 36ºC e o calor era insuportável. Tomei o trem comum que durou uma hora e meia para a cidade de Toyohashi, onde iriamos encontrar o Tomita e depois pegamos o shinkansen (trem bala) que levou uma hora até Shin-Fuji, o local mais próximo do monte Fuji. Dalí tomamos um onibus que leva mais ou menos uma hora e meia até o estágio 5 do Fuji. Nós não subimos o Fuji desde o pé da montanha porque isso levaria seguramente uns 2 dias.
















O estágio 5 começa da altura de 2400m, quando já ultrapassa a floresta que cobre parte da montanha, mas que mesmo assim significa uma caminhada para os 1.224m restantes. O caminho é bem íngreme e cheio de areia e rochas vulcânicas.
Quando você sai do onibus e olha para a montanha, imagina que não vai ser tão dificil e nem faz idéia do impacto da altitude e do frio que vai ficar. Até fazemos piadas com isso, mesmo sabendo que não vai ser tão tranquilo assim. Prícipiante é ingênuo mesmo! Mas o plano é subir custe o que custar e ver o sol nascer de lá do topo. São 18:30, trocamos de roupas e estamos prontos para começar a subir. O plano é ir sem pressa e chegar no topo por volta das 3:30 da manhã do dia seguinte, levando de 9 à 10 horas. Sabemos que lá em cima a temperatura pode chegar nessa época a quase 0ºC e com o vento a sensação disso se agrava. O início é bem tranquilo e a gente chega a pensar que deve ser algum truque para não nos desanimar logo de cara...rs Porém rapidinho a coisa se mostra como vai ser. A noite cai e a temperatura também começa a baixar. Cada parada significa descanço de uns 5 minutos e uma peça de roupa a mais para esquentar. Reparamos que o descanso não é proporcional ao tempo percorrido. Você pode descançar 20 minutos, mas isso não significa que vai conseguir andar por mais 20 minutos. Na verdade você anda cada vez menos.




Subimos a passos lentos. Paramos e bebemos água e comemos alguma coisa. Estamos bem preparados com barrinhas de cereal e paçoquita! Em cada estágio ou descanço na trilha temos a oportunidade de olhar para baixo. Isso era um bálsamo! O Fuji é cercado de cidades e elas estavam todas muito iluminadas e cada vez mais pequenas e distantes. O céu estava abrindo e permitia ter a exata sensação do que significava subir essa montanha. Nós estavamos a muito tempo acima das nuvens. As estrelas apareciam infinitamente e a vontade de tocá-las era enorme. Estrelas cadentes eram como peixes no mar que tentavam escapar de seus olhos assim que você as notava. Eram muitas e contantes.
Já estamos caminhando a mais de 4 horas e nem sinal do fim da trilha. A cabeça começa doer, o corpo tenta acostumar com a sensção de esquenta-esfria por causa da caminhada e do vento. Quando anda faz um calor enorme e o corpo começa a suar, mas quando para ele esfria em poucos segundos e você já está quase batendo os dentes. Nessa hora o pensamento vai para muitos lugares. Você não apenas se pergunta porque esta fazendo isso, mas em muitas oportunidades não te resta nada além de sentir aquele momento. Você é o frio e a dor, a felicidade e a testemunha daquele lugar.


Uma sensação de isolamento fica nítida e por mais que você se dê conta que existem outras centenas de pessoas próximas a você, fazendo exatamente a mesma coisa, sua cabeça para. Não te resta muito além de tomar consciência desse tempo e espaço. As vezes suas pernas tremem, sua garganta seca e nessa mesma hora, quando imagina o mundo que ficou lá embaixo, você não escuta mais nada. Por pouco tempo fiquei triste. Não sabia se o aperto no peito era por conta da altitude ou da angústia que aflorava. Ah! Que vontade de chorar... Eu já não entendia o que estava contecendo, a única coisa que importava agora era dar mais alguns passos. Olho para o Tomita e a Keiko e tento imaginar o que eles estão sentindo. Eu então canto como se repentindo a lembrança de meu mestre de capoeira no início da roda dizendo: “oh! tira a cobra do caminho meu Jesus São Bento...” A caminhada prossegue. Agora não é apenas resistência, é paciência e calma. O Tomita conta que a primeira pessoa a subir o Fuji foi um monge peregrino e anônimo no início século XV. Dá pra imaginar uma coisa assim? Que tipo de pessoa era essa? Se nós que estavamos subindo a partir do meio da montanha, com roupas adequadas, alimento e água suficiente e a coisa já estava um pouco complicada, imagina essa criatura fazendo a mesma coisa a 4 séculos trás!
No estágio 8 paramos para dormir um pouco. Foi dificl encontrar um espaço para parar e se abrigar do frio, fugindo do barulho das outras pessoas, ou apenas onde esticar as pernas sem tantas rochas. Eu não consigo nem cochilar! Depois de 30 minutos de descanso seguimos em frente. Um pouco mais de uma hora, considerando algumas paradas, chegamos no estágio 9. Até o topo são um total de 10 estágios. No estágio 9, nos bancos para descançar, vejo uma coisa incrivel. Tem um garoto de no máximo 10 anos lá. Já passa da 1:00 da manha e o moleque não para de falar e pular no colo daquele que imagino ser seu pai. Ele está feliz. Esse garoto japonês me fez pensar na maneira que educamos nossas crianças hoje em dia. Muitos adultos que conheço certamente diriam ser impossivel uma subida dessas para uma criança. Eles mesmos pensam não ser capazes. Mas estava lá, quase no topo da montanha mais alta do Japão uma criança, olhando com toda curiosidade do mundo para aquilo tudo. Ela estava alí porque acreditava ser possivel e com certeza também ninguém disse para ela que não seria capaz de fazer. Estava junto de um adulto que nitidamente não achava nada fácil caminhar até lá, mas juntos eles sorriam um para o outro e não acredito que pensavam em desistir. Eu não os encontrei no topo, mas espero que eles tenham visto o sol nascer também... Depois na descida, encontrei mais um menino e uma menina subindo.
















Ainda alimentando a alma com aquela beleza de vista noturna, percebemos que estamos quase no alto. Passamos pelo primeiro portal. O cansaço já se transformou em alguma outra coisa e nem pensamos mais nele. Passamos pelo segundo portal e temos certeza que falta pouco para o cume. O terreno se torna cada vez mais irregular e não conseguimos mais ver tantas lanternas a nossa frente. E eis que surge um jinja, templo xintoista que parece dar as boas vindas para aqueles que chegam até o alto. São 2:30 da manhã. Chegamos duas horas adiantados. O vento é forte e parece cortar a pele. Minha roupa não esta dando conta da baixa temperatura. Fico tremendo e nos amontoamos na porta do templo com outras dezenas de pessoas. O Tomita parece estar sofrendo muito com o frio. Ainda faltam 2 horas e meia até o sol aparecer e começar a nos esquentar. O cansaço é grande e dessa vez acabo cochilando um pouco. Acordo e me dou conta que há um casal de brasileiros ao lado. Eles perguntam se é nossa primeira vez subindo também e o cara diz que nunca mais vai fazer isso outra vez. Dentro de mim eu morro de rir. Ele parece ser daqueles que tentam ter o máximo de conforto possível no dia dia e digo que vale a pena sim, mas não é facil, que o esforço também esta em saber apreciar aquilo tudo. Ele estava tão concentrado na dor do corpo em si, que nem reparou no oceano de coisas novas que estavam acontecendo ao seu redor e dentro dele. Ele me chama de louco depois que digo que gostaria de voltar. Desejo-lhe boa sorte e espero que tenha entendido alguma coisa quando o dia clareou.


Tentamos dormir um pouco e por volta das 4:00 as pessoas começam a ir para o outro lado da montanha, buscando por uma vista melhor antes do sol aparecer. Sentamos e esperamos. Algumas cidades podem ser vistas por entre as nuvens. Ao contrário de nós, elas ainda dormem. As estrelas vão perdendo sua luz e o céu começa a ficar cinza. No horizonte uma tonalidade diferente vai surgindo lentamente. Uma cor alaranjada que vai ficando roxa, vermelha. Uma mistura magnífica. O azul começa a se destacar. O sol vem vindo! Eu nem me dei conta quando ficaram nítidas, mas as nuvens estão quase tocando meus pés. Aparentam ser um amontoda de algodão e lã gigantes. Quase não se movem, estão paradas, cobrindo a terra e refletindo os primeiros raios de sol. Não sei dizer se isso acontece rápido ou lento, mas esta alí bem na minha frente, com grande serenidade. O sol vem vindo com toda sua segurança e força pronto para nos aquecer depois de horas de frio. Um momento que parece durar uma eternidade. Entendo que não conquistei esse lugar. Estamos juntos e não existe nenhuma sombra de dominação e poder. Acontece uma realização enorme, um encontro bonito, uma oportunidade rara. Ele me aceita.




































Reconfortado e com o coração bem mais leve, começamos a explorar a cratera do monte. É enorme! Quase não se vê o fundo. Suas paredes estão cobertas de uma grande camada de gelo. Caminhamos em volta e agora buscamos um lugar para comer. Pensamos em ir ver o templo por dentro, mas está tão cheio de pessoas que acabamos desistindo... Por fim encontramos outro local, muito mais singelo e que não desperta a atenção das outras pessoas. Um casinha que protege imagens de alguns seres budistas. Imagens de demônios guardiões das portas do inferno budista. Mas por favor, não pense nesse inferno e nesses demônios pela perspectiva cristã. Apesar de usar os mesmo termos o papo é bem diferente... Eu me aproximo e fico feliz de presenciar mais isso. Comemos uma lata de milho, uma de seleta de legumes, algum cereal e estamos prontos para descer. A estimativa é de 3 horas morro abaixo. E vamos embora...






























Reza a lenda que para baixo todo santo ajuda e foi com esse espírito que iniciamos a descida. Pernas cansadas, corpo coberto de poeira, mochila mais leve, passando pelo primeiro portal. O esforço agora é diferente. Antes era o impulso para cima e agora é a contenção para não rolar o barranco. A descida parece não ter fim! Estamos a quase duas horas andando e o final nem aparece para dar um ânimo...rs Encontramos muitas pessoas subindo agora, inclusive dois caras carregando bikes. Tem uns japas malucos que descem de bicicleta! Eu não vi, mas estavam eles lá com suas bikes e pareciam bem animados. Aceno em positivo e fico sonhando em um dia quem sabe estar ali com a minha magrela. O sol começa a queimar e a temperatura agora deve estar em torno de 37ºC. Surpreso com isso? Existem regiões no Japão que chegam a 41ºC! Onde eu moro ontem fez 39ºC.




























































Chegamos no estágio 7 e 1/2, depois 7, o 6 e por fim o 5. Ufa! Caimos exaustos. Descansamos uns 45 minutos e pausa para o banheiro. Mas nem pensar em parar totalmente. Ainda temos uma hora e meia de onibus, mais umas 2 e meia pelo menos de trem e mais alguns minutos de bicicleta até em casa. Só penso no banho e no ar condicionado!
Pronto. São quase 16:00 do dia seguinte. Estou limpo, alimentado e deitado na sala com o ar na temperatura mais baixa possivel. Agora você me pergunta se eu iria novamente? Se valeu a pena? Com certeza! Talvez tentaria uma outra trilha, só para variar. Mas não na semana que vem. Himalaia, me aguarde.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Jazz japonês

Muita gente já ouviu falar que os japoneses adoram jazz, bossa nova, samba e outras cositas mas... Eu só vim aqui para corroborar isso. Um dos grupos de jazz que mais gosto do Japão é o Ego Wrappin. Na verdade é uma dupla originária de Osaka que estão juntos desde 1996 - Yoshie Nakano na voz e Masaki Mori na guitarra. Foram conquistando importante espaço nas terras nipônicas e hoje também andam se aventurando bastante pela Europa. Eu não tenho notícias de que tenham sido lançados no Brasil, só importado mesmo...

Mas a minha sugestão para quem quiser ouvir mais algumas coisas e estiver em São Paulo é dar um pulo na Fundação Japão na Av. Paulista, 37, 2º andar (atrás da Casa das Rosas) e perguntar por cds deles. Diga-se de passagem que lá eles possuem um acervo muito bom de música, cinema e literatura sobre o Japão e coisas relacionadas, além de toda consulta ser gratuita e um monte de coisa ser levada para casa. Vale a pena conhecer.

Bom, tá aqui para vocês dois vídeos que gosto bastante. O que adoro também é que ela canta quase tudo em japonês e para muita gente isso pode soar bastante inesperado.

O primeiro é uma música ao vivo chamada Katsute.




O segundo é uma balada um pouco pop, mas que dá para ter uma boa idéia de quem são as criaturas em questão.




o site deles é www.egowrappin.com


Divirtam-se!

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

O que irei lembrar do Japão.

Existem coisas bem legais pelo cotidiano japonês. Mantenha-se atento e aproveite o que puder. Escrevo agora parte de coisas que eu não vou esquecer. Acho que salta aos olhos...

Eu não vou esquecer das bicicletas. São muitas! e por todos os lados. Com certeza o Japão tem mais bicicletas que japoneses. Consiga uma emprestada, comprada, adquirida "gratuitamente" em alguma estação de trem, não importa, apreveite a paisagem e não se esqueça: respeite o ciclista, uma bike nas ruas é igual a um carro a menos, é algo barato, ecológico e saudável.






























No verão muitas pessoas estão de yukata (quimono). Isso sim tem o peso da tradição. Fica bonito...















Aproveitando a temporada do plantio de arroz, veja como o tanbo (campo de arroz) é preparado. Saia para caminhar por entre os muitos espalhados pelas cidades do interior. Corra por entre os campos que crescem para alimentar o corpo e satisfaça o espírito também.











terça-feira, 7 de agosto de 2007



I COLÓQUIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA

SÃO PAULO

7 e 8 de setembro de 2007

Ação Educativa - Rua Gen. Jardim, 660 - V. Buarque

MANAUS

10 de setembro de 2007

Campus da Universidade Federal do Amazonas


O Instituto de Estudos Libertários - IEL, a Editora Imaginário, a EDUA e a Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas, com o intuito de fomentar o estudo, a reflexão de uma educação formadorade um ser humano livre e compromissado com a construção de uma sociedadejusta e igualitária, organizam o I COLÓQUIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA;
Trazem aos educadores, e libertários em geral, a rica história de doisséculos de reflexão e experimentações em favor de uma educação fora daesfera estatista, capitalista e religiosa, voltada para a formação de umser livre, participativo e combativo contra todas as forças coatoras einibidoras de sua livre ação.
Coube-nos, uma vez mais, dispender grande esforço para a realização deste evento. O colóquio acontecerá por meio de inscrição de 100 participantesque pagarão R$ 100,00 para cobrir os custos (passagens aéreasinternacionais, hospedagem, alimentação, transporte e divulgação). Os participantes terão direito, durante o Colóquio em São Paulo, a um ou mais livros de educação recém-lançados, ao preço de capa, até o valor máximo deR$ 80,00. Caso a escolha dos títulos ultrapasse o valor acima citado, o participante efetuará o pagamento do complemento.
Observamos que sob nenhuma hipótese haverá restituição do valor total ou parcial da inscriçãotendo em vista seu emprego no financiamento do evento. Garanta já a sua presença pois há somente 100 vagas.

Participantes

•Hugues Lenoir (França)
•Francesco Codello (Itália)
•José Pacheco (Portugal)
•Sílvio Gallo (Unicamp/IEL)
•José Damiro de Moraes (IEL)
Alexandre Samis (IEL)
José Eduardo Valladares (Unicamp
•Ana Elisa Siqueira (EMEF Amorim Lima)

Organização

Instituto de Estudos Libertários - IEL
Editora Imaginário
EDUA/FACED/UFAM

Participantes estrangeiros

Hugues Lenoir
Professor e diretor de pesquisas de Ciências da Educação e diretor do Centro de Educação Permanente da Universidade Paris X.

Francesco Codello

Historiador da Pedagogia e diretor pedagógico em Treviso. Membro do IDEN(International Democratic Education Network) na Itália e redator da revista italiana Libertaria.

José Pacheco
Pedagogo e fundador da Escola da Ponte, em Portugal.

Programação em São Paulo

7 de setembro - Sexta-feira

9h30 - 12h30

Educação Democrática e Pedagogia Libertária

Francesco Codello

Helena Singer1

4h30 - 17h30
Autogestão e Educação Permanente
Hugues Lenoir
Sílvio Gallo1

8h30 - 21h00
Educação Libertária e Ensino Público
José Pacheco
Ana Elisa Siqueira

8 de setembro - Sábado
9h30 - 12h30
Os Anarquistas e a Educação na Europa e no Brasil
Francesco Codello
José Damiro de Moraes

14h30 - 17h30
Sindicalismo e Educação: Autogestão e Democracia na Escola
Hugues Lenoir
Alexandre Samis
Eduardo Valladares

INSCRIÇÃO

I Colóquio Internacional de Educação Libertária (São Paulo)
As inscrições devem ser feitas mediante depósito na seguinte contabancária:
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Revista e livros que serão lançados durante o evento:
* Pedagogia Libertária - Silvio Gallo
* Educar para Emancipar - Hugues Lenoir
* A Boa Educação: experiências libertárias e teorias anarquistas na Europa, de Godwin a Neill vol. 1 - Francesco Codello
* A Pedagogia Libertária - Edmond-Marc Lipiansky
* Revista Educação Libertária: Experimentações Libertárias em Educação,ontem e hoje

Trincheiras



Escrito por Danilo Pretti Di Giorgi
03-Ago-2007


Ouvi estes dias um economista, entre amigos, acusar os ambientalistas de “cavar trincheiras contra o desenvolvimento em um modelo capitalista, depois do fracasso do sistema socialista”. Para embasar sua tese, citou nossa luta contra a expansão desenfreada dos biocombustíveis, contra novas hidrelétricas na Amazônia e contra a energia nuclear. Para ele, “a ordem é paralisar”.
Interessante analisar esta tentativa de ligar os objetivos da esquerda e dos ambientalistas. O cidadão em questão parece querer dizer que os comunistas agora estão disfarçados de defensores da Natureza para, no momento certo, junto com Fidel, Chávez e Morales, tomarem o poder e começarem a comer as criancinhas (de repente contando até mesmo com o Lula, que finalmente sairia do armário).
É fato que existe no ar uma raiva contida contra as demandas ambientalistas. Esse sentimento, exposto mais descaradamente nas conversas particulares, muitas vezes transforma-se em palavras públicas nos editoriais e matérias relacionadas ao tema nos grandes jornais, no rádio e na televisão. Os exemplos são muitos e praticamente diários. Um amigo meu, por exemplo, ouviu da boca do jornalista Joelmir Betting que os defensores do meio ambiente são ''comunistas desenganados travestidos de ambientalistas indignados''.
Como é complicado esculhambar escancaradamente quem luta pela preservação da Natureza, as críticas públicas normalmente aparecem revestidas por um “verniz social”, com o uso de palavras fortes, como “desenvolvimento” e “crescimento da economia”. Interessante notar que a intenção aparente é sempre o bem de todo o povo brasileiro. São lembradas nos textos mazelas históricas da nossa sociedade, como a fome e a falta de saneamento básico. A retórica utilizada quase sempre tenta convencer-nos de que a solução dos problemas nacionais só depende da liberação das obras na Amazônia ou de transformar o Brasil num imenso canavial. Nunca se admite a existência de interesses particulares em jogo. É a mesma coisa que o presidente americano afirmar que invade países ricos em petróleo para estabelecer a “liberdade” e a “democracia”.
A humanidade está muito agarrada à idéia do crescimento econômico baseado no consumo irresponsável de recursos naturais. Mudar esta concepção, especialmente na cabeça daqueles que mais ganham com este modelo, é muito difícil.
Norberto Bobbio, filósofo político italiano falecido em 2004, deu uma definição extremamente interessante para o que seria esquerda e direita na política contemporânea. Segundo ele, quem é de esquerda vê as desigualdades e injustiças sociais como anomalias que podem e devem ser corrigidas. A direita considera esses fatos como leis da Natureza, imutáveis, e que nada pode ser feito contra eles, apenas mitigar seus efeitos.
Confirmando a tese do notório intelectual, a maior parte dos ambientalistas tende à esquerda – especialmente aqueles que questionam a construção de novas hidrelétricas e os perigos de uma guinada mundial em direção aos biocombustíveis, ao invés da necessária redução da demanda por energia.
Discordando um pouco do economista do começo deste artigo, eu diria que nós, ambientalistas sérios, queremos sim, ''cavar trincheiras'', mas não “contra o desenvolvimento em um modelo capitalista”. Na verdade as trincheiras são contra a continuidade do atual modelo de desenvolvimento predatório e insustentável, pouco importando se este modelo é classificado como socialista, anarquista, capitalista ou comunista. A questão colocada não é de disputa pelo poder ou defesa de uma ideologia. A questão ambiental é coisa muito mais séria do que luta geopolítica com motivações econômicas pelo poder ou pelo comando do mundo.
Basta abrir o olho e ver. Tem gente (e é muita gente) que não consegue (ou não quer) perceber, apesar de tantos e tão claros sinais, que não tem mais para onde correr, que este modelo está falido, que é insustentável e que precisa ser mudado. Essa verdade está aí, para quem quiser olhar e ver. Não existem argumentos que possam derrubá-la.
Não é preciso ir muito longe. Ninguém precisa ser cientista nem entender complicadas teorias e simulações sobre o futuro da vida caso a temperatura aumente 0,1ºC, 3ºC ou 10ºC. Basta apenas saber que estamos usando os recursos naturais a uma taxa 25% maior que a capacidade de regeneração da Natureza (segundo o relatório Planeta Vivo 2006, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e do WWF). Estamos fazendo como uma família que gasta todo mês mais do que ganha, acumula dívidas dificilmente pagáveis e caminha para a falência.
Esta informação não é nova. É sabido que superamos a capacidade de regeneração do planeta por volta de 1980. Desde então o “prejuízo” só vem crescendo e estima-se que em 2050 a humanidade precisará de duas Terras para prover suas necessidades. Mas temos uma só mesmo e ela está acabando.
O deputado estadual Adriano Diogo, do PT, ex-secretário paulistano do Meio Ambiente e referência política quando o assunto é ambientalismo, diz que, se no século XX a grande utopia foi a luta dos trabalhadores, a grande utopia deste começo de milênio é encontrar a saída para o enigma ecológico. “Todos querem defender o verde, todos no planeta somos verdes. Mas tem quem defenda o verde dos dólares no seu próprio bolso. Outros defendem o verde das matas”, diz, irônico. O problema ambiental, para ele, é um problema de concepção de mundo.
Já lancei nesta coluna o desafio para quem for capaz de me apresentar uma teoria minimamente aceitável que mostre ser possível escapar do naufrágio, de uma calamidade - escapar mesmo, não apenas adiar, que fique claro -, caso nossa escolha seja realmente a de continuar seguindo por este caminho, o caminho de buscar combustíveis alternativos ou fazer novas hidrelétricas para produzir uma energia que vai servir para alimentar um “sistema defunto”, que morreu mas ainda não deitou devido à inconcebível ignorância do ser humano. Uma proposta que mostre que é possível continuar nossa caminhada do jeito que estamos, sem uma redução na demanda por energia e sem uma mudança radical na forma de relação com o planeta e entre os homens. Até agora ninguém respondeu ao desafio. Sigo esperando.
Danilo Pretti Di Giorgi é jornalista. - Email: digiorgi@gmail.com

domingo, 5 de agosto de 2007

Conhecendo Yoro

Yoro é um lugarzinho na província de Gifu com montanhas lindas. Possui uma das melhores fontes de água mineral do Japão e está em um parque com inúmeras espécies de animais típicos da região. Reza a lenda também que uma dessas fontes possui o poder de rejuvenescer e curar doenças. Resolvi conferir se é verdade. Foram quase 30 kilometros para ir e voltar de bicicleta e descobrir mais um lugar que vai ficar na memória.


O começo da subida...





























Chegando...





















"...eu vi mamãe Oxum na cachoeira.

Deitada na beira do rio.

Colhendo lírio, lírio ê...

Colhendo lírio, lírio á...

pra enfeitar o seu conga."




















E quando a gente chega bem lá perto do alto, encontra um lugar pra ajudar com o silêncio.

Lá de cima é assim:


Depois de volta ao pé da montanha...



Bom, eu não tenho certeza se a água possui propriedades terapêuticas como dizem, mas a cerveja feita com ela é excelente!

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Escândalo

Então vai.
Escrito por Shusako Endo, é uma preciosidade da literatura japonesa publicado em 1986. Conta bem uma história repleta de suspense e reflexão oriental. Ele narra o drama de um escritor sexagenário bastante devotado a família e a religião e que se vê envolvido em denúncias que abalam sua reputação. Algumas pessoas alegam encontrá-lo constantemente nos puteiros da cidade visitando espetáculos pornográficos. Ele diz não saber do que se trata, mas a coisa caminha a tal ponto que ele começa a duvidar de si mesmo. Tudo indica que há um sósia disposto a prejudicá-lo. A narrativa é cheia de ótimas descrições das ruas do Japão e do baixo meretrício, se é que vocês me entendem... O que poderia ser facilmente uma boa literatura erótica, vai se revelando na verdade em um ótimo panorama psicológico da sociedade japonesa e de um homem que precisa enfrentar depois de tanto tempo seus desejos mais íntimos. Escãndalo vale a pena tanto pela narrativa de Endo, como para saber um pouco mais dos limites entre realidade e ilusão, erotismo e crime, desejo e repressão na terra nipônica.
A ilustração abaixo é a capa do livro editado em português pela Rocco.



quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Entrevista para ANA - parte 2

Novamente esta aqui na íntegra a entrevista sobre alguns aspectos da vida no Japão concedida para a Agência de Notícias Anarquistas.

Mais abraços.

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Leia a seguir, a segunda parte da entrevista com o anarquista Alessandro Campos, que atualmente vive na cidade de Ogaki, no Japão. Desta vez ele nos conta um pouco, entre outros assuntos, do racismo e da discriminação sofridas pelas minorias que vivem no Japão.

ANA > Já percebeu alguma movimentação anárquica nessa cidade onde mora, Ogaki?

Alessandro < Não, aqui nada ainda. Mas em Nagoya, perto daqui tem um bar que rola muitos sons bons. O Huck Finn sempre tem uns shows punks e umas barulheiras do tipo... Bem legal! (risos) O Mukeka de Rato veio tocar nesse lugar há uns dois meses atrás. Tem uma banda punk formada só de brasileiros que toca por aí também. Chama Nomares e um dos caras da banda, o Rafael, tem um selo - www.karasukiller.com - e tá sempre organizando eventos nessa região. A coisa é bem faça você mesmo. Eles são uma mistura de samurais punks com maloqueiros bons de briga de qualquer grande cidade brasileira! O que esperar de uns caras que tocam cover do Olho Seco para os japas se matarem? São ótimos! Mosh!

ANA > Nem de grupos da esquerda tradicional?

Alessandro < Isso sim. Não exatamente na cidade, mas na província (é como se fosse um estado no Brasil). Existe um sindicato que tenta trabalhar com as comunidades de imigrantes aqui. Recentemente houve um caso de um brasileiro que foi demitido por chamar o chefe de idiota (bakkayaro) em uma discussão. A empresa alegava que isso era um insulto imperdoável e tentou demiti-lo por justa causa. O sindicato entrou com um processo dizendo que os direitos desse trabalhador não poderiam ser desrespeitados por algo tão pequeno como isso. O processo durou mais de um ano e o funcionário ganhou a causa e isso se deu pela atuação direta do sindicato. Acho que a empresa esperava que ele cometesse harakiri (morrer com um corte na própria barriga) ou ainda cortar o dedinho como prova de arrependimento por insultar o superior... (risos) Isso é o que acontece quando as pessoas assistem muitos filmes sobre a máfia japonesa yakuza.

ANA > E em Tóquio?

Alessandro < Em Tóquio sim. Sei que há uma livraria anarquista e um espaço que é uma espécie de café que rolam shows e debates. Eu infelizmente ainda não pude ir porque realmente fica muito longe e caro. Tenho a impressão que há coisas mais organizadas em Tóquio e em outros grandes centros como Kyoto e Osaka. São lugares que tiveram uma presença maior de anarquistas, principalmente em sindicatos. No restante do país são mais indivíduos ou grupos de estudos em universidades. Tenho um amigo em Nagoya que fez a tradução dos livros da Soma do Roberto Freire para o japonês. São coisas assim que aparecem mais.

ANA > Esses livros foram traduzidos e editados? Como ele descobriu a Soma, uma terapia anarquista?

Alessandro < Isso realmente foi engraçado. Eu conheci o Ota há uns dois anos atrás em São Paulo, quando ele foi numa roda de capoeira do meu grupo Angoleiro Sim Sinhô na Barra Funda. Ele estava por São Paulo conhecendo exatamente o Roberto Freire. Mas nesse tempo a gente nem se falou muito. Ele é bem japonês do tipo caladão... (risos)
Quando eu cheguei aqui no Japão fui para uma roda do grupo que ele faz parte, e foi aí que fiquei sabendo melhor como tudo começou. Ele é capoeirista e faz um tempo que se interessa por psicologia reichiana também. A anarquia apareceu para ele nesse momento que conheceu a Soma. Quando ele estava em Londres viu um livro da Soma em inglês e não parou de ler. E foi então que resolveu fazer a tradução. Ele traduziu do inglês há mais ou menos um ano. O livro ainda não saiu, está disponibilizado apenas on-line porque pelo que sei ainda não conseguiu grana para publicar.

ANA > Uns anos atrás eu li um artigo de um anarquista japonês que dizia que a sociedade japonesa é extremamente racista e xenófoba, em relação aos trabalhadores imigrantes iranianos, chineses, filipinos, malasianos, brasileiros e outros povos. É assim mesmo? Já percebeu algo nessa sua estadia por aí?

Alessandro < Isso é um ponto bastante delicado. Eu concordo plenamente com isso. Mas não devemos esquecer que o Japão vem de um histórico com longo período de isolamento do restante do mundo, que foram esses 3 séculos governados pelo Xogun. Eles possuem um aspecto mais reservado se comparados com o ocidente ou mesmo com outros povos da Ásia, e isso às vezes nos parece um tipo de discriminação. Diria que há um tipo de desconfiança com o diferente, com o outro de fora. Guardadas as proporções das diferenças culturais podemos falar desse racismo e dessa xenofobia. O fato é que esse isolamento e essas diferenças não podem ser aceitas com normalidade para o preconceito.
Penso que parte desse problema vem diretamente ligado ao nacionalismo japonês. Até o final da segunda guerra a figura do imperador era a de uma divindade. Idéias clássicas de todo nacionalismo como superioridade racial, cultural e dominação estão ainda presentes aqui, apesar dos jovens não se importarem tanto com a família real e isso estar diminuindo. Às vezes a xenofobia é uma maneira de encontrar um bode expiatório para os próprios limites e problemas e não assumir a responsabilidade. Mas como em todo lugar, existem pessoas boas e outras não tão boas.
Acho que os fatos podem falar por si. Recentemente um casal de brasileiros (ambos descendentes de japoneses, acho que netos) decidiram comprar um imóvel e viver definitivamente no Japão. Buscaram por um terreno e fizeram a planta da casa que queriam construir. As negociações com a
imobiliária começaram e um tempo depois, sem nenhuma razão clara, ficaram tumultuadas e o negócio não se concretizava. Depois de mais de um mês, desconfiados, pressionaram a imobiliária para saber se havia algum problema. Foi então que descobriram que a associação de moradores quando soube que iriam morar "estrangeiros" (gaijins) na vizinhança, formaram uma comissão e exigiram que a imobiliária não realizasse a negociação. A imobiliária temendo ser mal vista no bairro estava tentando usar outros meios para fazer com que esse casal desistisse do negócio. Em outra cidade próxima daqui, haviam estabelecimentos comerciais, tipo restaurante e bar, que colocaram placas em português e espanhol informando que não atendem esse "tipo" de público. Existem casos de vídeo-locadoras que não fazem cadastro de estrangeiros e
acho que quase todo mundo que conheci que está há algum tempo aqui tem alguma história pra contar de discriminação. Às vezes parece um novo tipo de apartheid e não sei dizer quanto tempo poderia continuar existindo. Pra compensar a falta de anarquistas, ironicamente por toda parte você encontra uns grupos fascistas. Você pode ver eles nas ruas, em uns ônibus todos pretos com a bandeira do Japão imperial pintada e com alto falante tocando música nacionalista e convocando a população para o resgate das tradições nipônicas e pela expulsão dos imigrantes e do estilo de vida ocidental. Como eu não falo japonês direito não consigo saber exatamente como é esse discurso, mas amigos que falam japonês me dizem que é o velho lixo nacionalista xenofóbico de sempre.
Recentemente houveram eleições municipais e essa foi a bandeira de muitos candidatos: apontar os imigrantes como responsáveis pelos problemas do Japão, particularmente de toda criminalidade. E aí nesse caso é mais duro ainda porque além de ser considerado um criminoso, é um não japonês, e as prisões aqui possuem um grande histórico de violação de direitos humanos.

ANA > E que tipo de criminalidade são mais comuns em Ogaki, ou no Japão como um todo?

Alessandro < Geralmente roubo de carros, casas e lojas. Tráfico de drogas também. Um pouco raro crimes com armas de fogo, provavelmente pela dificuldade em consegui-las por aqui, legalmente é quase impossível. E muitos crimes passionais.

ANA > Com crimes passionais quer dizer machismo em último grau? Homens matando mulheres? O Japão tem uma tradição machista muito forte, não?

Alessandro < Geralmente homens matando mulheres. Eu sempre fico pensando nas diferenças culturais e em como experiências multiculturais podem ser enriquecedoras para ajudar a melhorar os desafios do mundo hoje.
Pensando por uma perspectiva mais coletiva, de um imaginário social compartilhado, sempre podemos ensinar e aprender alguma coisa. Podemos aprender com os japoneses, por exemplo, um pouco mais sobre o respeito aos ciclistas e a preservação de sua história. Mas sem dúvida eles precisam aprender muito a respeito de gênero. Uma tradição muito sexista ainda vive aqui.
Homens e mulheres podem trabalhar juntos fazendo a mesma coisa, o salário das mulheres é de 20% a 40% inferior, e isso é publico e aceito quase sem nenhum questionamento. O assédio às mulheres também é grande, tanto no trabalho pelos chefes como dentro de trens e ônibus. O metrô de Tokyo possui vagões somente para mulheres, já que é grande a quantidade de mulheres bolinadas. O mais maluco é que em muitos casos existem mulheres que não conseguem reagir, já que a boa educação ensina que uma boa mulher nunca deve chamar atenção ou reclamar. Isso acaba tendo efeitos bem ruins porque mulheres sofrem esse tipo de assédio e não se sentem no direito de reclamar, agem como se fosse natural. As diferentes relações aluna-professor às vezes apresenta isso. A aluna não consegue rejeitar as investidas do "sensei", a relação hierárquica pesa. Você também ainda encontra casais nas ruas, geralmente pessoas idosas, em que a mulher deve andar uns 2 passos atrás do homem. Outra situação em grande escala é o fato dos japoneses também serem os maiores consumidores de pornografia do mundo (não que eu tenha algo contra a pornografia em si e isso seria um assunto pra outra hora...), mas aqui inclui grandes quantidades de material de pedofilia. Não há nenhum impedimento legal no Japão para divulgação desse tipo de material, eles são bem coniventes com a pedofilia e muitos estadunidenses e europeus chegam constantemente ao Japão com intenção de negociar esse tipo de material. São coisas significativas na cultura japonesa e podem mostrar um pouco porque ainda há tantos crimes passionais. O que é bom é que a juventude vem demonstrando um outro comportamento que não compactua mais tanto com isso.

ANA > E no Japão há prisões privadas como nos Estados Unidos?

Alessandro < Recentemente foi inaugurado o primeiro presídio privado, todos os outros são do Estado.

ANA > Com esse grau alto de violações dos direitos humanos nas prisões japonesas, é trivial acontecerem rebeliões nos presídios?

Alessandro < São raras, muito raras. Mesmo tendo atualmente uma super lotação do complexo prisional com mais de 70.000 mil presos, enquanto se fala que o máximo seria de 60.000. Acontece que as prisões são pequenas e de um modo geral os presos não passam tanto tempo juntos para talvez pensar e organizar uma rebelião. O controle é muito rígido. Quando um preso quer falar algo com alguém que não seja companheiro de cela, ele precisa ficar em pé diante da porta em posição de "sentido", dizer que o prisioneiro tal (no caso ele!) deseja falar. O código de conduta dos prisioneiros é o mesmo desde 1908. É comum usarem como tratamento para quem desrespeita-lo, colocar a pessoa em uma camisa de força e deixá-la por horas ajoelhado no chão da cela. Aqui também ainda existe pena de morte.

ANA > E que violações são mais comuns nas prisões?

Alessandro < Além das punições que descrevi com o uso de camisa de força, ocorre privação de visitas e torturas físicas e principalmente psicológicas.

ANA > O nível de controle do Estado japonês deve ser muito maior que no Brasil, extremamente sofisticado, não?

Alessandro < O Estado ainda está muito identificado com aspecto da cultura de um modo geral. O regime dos xoguns deixou marcas profundas na coletividade japonesa. As inúmeras guerras em que o Japão se envolveu, principalmente no final do século XIX e no XX tinham mais do que apenas um desejo imperialista. Na prática faz pouco tempo que os japoneses se deparam sem poder ignorar o restante do mundo. Os imigrantes estão chegando de maneira significativa nos últimos 40 anos. Acho que o discurso e a prática ainda são bem conservadores e a alienação da população de um modo geral é bem utilizada pelo Estado. Apesar de que a cada ano os casos de corrupção aumentarem, a população segue bastante apática. Falar que alguém é um ladrão no Japão é algo muito duro não apenas para quem é acusado, mas para quem está falando também. O Estado usa a cultura para sua atuação, não apenas a velha tradição do pão e circo, mas a hierarquia e a posição social para manipular, coisas significativas para os japoneses. Para você ter uma idéia melhor, quando a segunda grande guerra acabou um dos pontos do tratado de rendição que o governo teve que assinar era o reconhecimento de que o imperador não era um Kami (Deus), mas um homem comum. Até hoje tem gente que não acredita nisso e pensa nos aspectos divinos de seus governantes. No Brasil foram publicados dois livros muito interessantes que podem ajudar a entender essa herança. "Corações Sujos" do Fernando Morais e "Gen, pés descalços" de Keiji Nakazawa. O primeiro sobre uns malucos de uma seita no Brasil chamada Shindo Renmei que disse que a derrota do Japão era contra-propaganda e aterrorizou a comunidade nipo-brasileira do interior de São Paulo. O segundo um relato autobiográfico em quadrinho incrível de um sobrevivente da bomba atômica em Hiroshima.
Vozes dissidentes sempre existiram, mesmo no tempo dos samurais houveram revoltas camponesas e ainda na primeira metade do século XX foi grande a influência do pensamento anarquista na luta dos trabalhadores. Mas como quase sempre acontece, a história é contada do ponto de vista dos vencedores, diga-se opressores.

ANA > É verdade que há muitos moradores de rua no Japão?

Alessandro < Sim, realmente há uma grande quantidade se levarmos em conta o espaço físico do território japonês e o número de habitantes. O governo fala algo em torno de 26.000 pessoas, mas como sabemos que todos os governos falam por números baixos, existem dados não oficiais que revelam aproximadamente 45.000 pessoas. Acontece que os japoneses tentam de muitos modos tapar o sol com a peneira e não reconhecem esse tipo de problema. Andando por grandes cidades, por exemplo, Tóquio, você encontra muitas pessoas vivendo em quase todos os grande parques da cidade. Elas vão parar nas ruas por diferentes motivos, mas o mais comum é a perda do emprego. Geralmente montam uma espécie de acampamento com lonas azuis e ficam próximos uns aos outros. Nesse site tem umas fotos: www.japanwindow.com/gallery/homeless/index.html

ANA > Esses moradores são oriundos do Japão mesmo ou imigrantes?

Alessandro < A maioria são japonês, mas você pode encontrar alguns chineses, filipinos e alguns pouquíssimos brasileiros. No caso dos imigrantes é um pouco mais difícil encontrá-los ou saber os motivos que levaram essa pessoa a se tornar morador de rua, porque existe o que chamaria de orgulho ferido. A pessoa vem pra cá com o sonho de ficar rica e acaba parando na rua, isso é complicado em contar para as pessoas que ficaram no seu país de origem.

ANA > Retomando o assunto racismo e xenofobia, você já sofreu algum tipo de discriminação racial?

Alessandro < Sem dúvida a pior experiência foi em um posto da imigração. O responsável era nitidamente um racista e não foi muito "legal" não apenas comigo, mas também com alguns filipinos e peruanos que estavam lá. Acho que quando não entendemos perfeitamente um idioma às vezes tendemos a confundir má educação e grosseria com discriminação. Houve uma situação em que pensei que estava sendo vítima de racismo em uma loja, mas depois vim a descobrir que na verdade a pessoa era bastante desagradável, inclusive com japoneses. Devemos estar atentos com isso para não fazer falsos julgamentos.

ANA > Uma pequena curiosidade, na cidade onde mora há terremotos? (risos)

Alessandro < O tempo todo! É uma sensação bem estranha, você não sabe o que fazer. Na verdade não há muito o que fazer, tudo tremendo e balançando... A sorte é que aqui eles costumam ser fracos, mas tem alguns lugares que a coisa é feia. E no litoral tem tsunami direto também. Além dos furacões. Ou seja, se o mundo for acabar mesmo, vai acabar aqui primeiro e vocês aí no Brasil vão ter metade de um dia pra aproveitar... (risos)

ANA > No começo da entrevista você disse que vive na cidade onde um dos grandes mestres do Haicai, Bashô, passou seus últimos dias. E como sou amante desses “poeminhas”, não poderia deixar de te perguntar: essa arte continua muito viva no Japão?

Alessandro < Pelo pouco que vi está sim. Uma das coisas muito agradáveis do Japão é que há respeito a suas artes, muitas delas estão bem preservadas. A preocupação estética está latente. Claro que isso não significa que todo japonês pode falar sobre e fazer essas coisas. Seria como pensar que todo brasileiro sabe sambar, gosta de feijoada e joga futebol... (risos)
A caligrafia, os desenhos, a música, a culinária, a literatura, as diversas cerimônias, o uso do kimono, são algumas das coisas que você pode aprender, no sentido que são acessíveis. Às vezes você precisa ir para uma escola especializada e dependendo da região uma ou outra coisa é mais viável, já que cada região acabou desenvolvendo um tipo de arte.
Aqui em Ogaki a figura de Bashô é bem conhecida. Existe um monumento em sua homenagem próximo a um dos rios que cortam a cidade. Uma estátua de tamanho natural com alguns haicais seus é bastante visitada e no museu da cidade também há artigos originais de seu tempo.

ANA > Você tem algum projeto em andamento no Japão? Musical, político...

Alessandro < Atualmente estou dando aulas de capoeira angola. Isso tem me ocupado bastante. Penso que para além da musicalidade e do exercício físico, a capoeira hoje pode ser um importante elemento cultural, que consideradas as devidas proporções, pode fazer pelas pessoas hoje o que fez pelos negros no Brasil e sua resistência contra a escravidão. A capoeira angola é uma legítima expressão da potencialidade de reivindicação e liberdade das pessoas que lutam contra todas as formas de escravidão. A capoeira angola é contra a opressão seja qual for e é, sim, a favor da vida e da liberdade. Fazer com que brasileiros possam alimentar e reconhecer suas raízes para poder lidar melhor com essa realidade bastante dura existente aqui, assim como compartilhar com os japoneses uma outra maneira de experimentar o mundo, é algo bastante importante pra mim, e com o pouco que sei tento ser útil de algum modo. Tenho tocado berimbau com um grupo de músicos japoneses, mas é algo bem amador e não sei o que vai acontecer. Também tenho estudado taiko (tambores japoneses) e está sendo uma boa experiência.
Apesar de considerar isso uma ação bastante política, no que diz respeito a outras formas de um ato estritamente político e também com a psicologia, ainda está tudo bem devagar. A idéia para curto prazo é poder realizar alguns grupos de apoio psicológico para brasileiros e outros para discutir questões pertinentes a identidade e atuação política dessa comunidade nas terras japonesas. Apesar de existirem mais de 300 mil brasileiros no Japão, iniciativas como essas são muito poucas e quase sempre institucionais (muitas ligadas as igrejas, ong´s bastante preocupadas em receber dinheiro do governo, ou mesmo do Estado em algum nível). O que poderíamos chamar de comunidade não possui quase expressividade para reivindicar o que quer que seja, e a mentalidade de gado que o povo brasileiro tem aí, parece se estender para a sua nova estadia em outro país. Não podemos parar, certo?

ANA > Para finalizar, você se lembra de alguma gafe sua cometida no Japão? Poderia nos contar? (risos)

Alessandro < Quando eu cheguei ficava o tempo todo andando de bicicleta na contramão e levei um bom tempo pra me acostumar com o sentido contrário das ruas. O sentido aqui é ir pela esquerda e voltar pela direita, como na Inglaterra. Muita gente me xingava e eu achava que estavam me cumprimentando...
Outra vez fui em um bar e quando ia embora eu pedi uma lata de cerveja pra ir bebendo no caminho. O pessoal do lugar não entendeu o que eu estava querendo e eu achava que eles não tinham compreendido meu pedido, o que estava falando, e foi aí que descobri que os japoneses nunca fazem isso quando vão embora de um bar. Comecei a conversar com o dono do lugar que gostava muito de música brasileira e ficamos falando sobre as diferenças que existem no samba e tal, falei da cerveja também. No final ele me deu duas latinhas por conta da casa... (risos)

ANA > As últimas palavras são suas... Valeu!

Alessandro < Obrigado pela oportunidade de pensar comigo sobre essas coisas todas. Refletir o mundo além dos limites de nossos olhos e experiências imediatas é dar uma oportunidade para superar preconceitos e limites. Já passou da hora de nossos esforços serem apenas para fazer a nossa parte. Sem dúvida essa idéia é importante, mas talvez não tenhamos tempo suficiente para conseguir os resultados que desejamos.
Há de se engajar mais em lutas que apoiamos. Também pensar no que podemos abrir mão ou não. Todo mundo quer mais isso ou aquilo, quer mais grana, tempo, outras relações etc, mas pouca gente está disposta a abrir mão de algo seu.
Há de se escolher entre a liberdade e a segurança, entre a paz e o progresso. Acredito que a anarquia ajuda a pensar mais na liberdade e na paz. A anarquia antes de mais nada, pra mim é uma maneira de trabalhar para me fazer alguém melhor, uma força contínua para não aceitar injustiças, para não negociar minha ética com os opressores, mas para colaborar com minha comunidade e meu mundo, uma tolerância melhor dos outros e das minhas contradições e defeitos, buscando por sincero amor e esperança. O Japão é uma terra bonita e seu povo tem desafios como toda a humanidade. Na essência não são melhores e nem piores. Devem abandonar a idéia de nacionalismo que os prejudica tanto e caminhar para uma só humanidade, que de fato somos.
Eu estou começando um blog e a idéia é falar sobre as muitas coisas do Japão e do Brasil. Tá convidado a olhar: www.paladardepalavra.blogspot.com
Boa sorte com a ANA. Saúde!


agência de notícias anarquistas-ana

No céu azul
parecendo pequenina
a grande gaivota.

Paula Lima Castenheira - 13 anos

Para falar com a ANA: moelpececito@hotmail.com