terça-feira, 2 de junho de 2009

O que fazer com a desilusão?

Conferência de John Holloway no Brasil em 2004.

O que fazer com a desilusão? O que fazer quando a democracia não funciona?

O Brasil é um país muito especial para formular essa pergunta. Há apenas dois anos, a esquerda mundial festejou o triunfo de Lula nas eleições. Houve uma grande vitória para a democracia, uma vitória real para a esquerda . E não qualquer esquerda, mas um partido de militância comprovada, com um líder trabalhador de miltância comprovada. Aqui, finalmente, todo mundo podia ver que era possível mudar a sociedade através de eleições democráticas. E agora? Dois anos depois, desilusão total. A eleição de Lula não mudou o Brasil, o governo segue implementando as mesmas políticas do capitalismo neoliberal. O que farão então com a desilusão? Escolher outro líder e esperar que seja melhor que Lula? Formar outro partido e esperar que seja melhor que o PT? Isto é o terrível dos governos de esquerda: quando fracassam (e sempre fracassam) parece que não há nenhuma solução e se instala a depressão. O fracasso de Lula não é simplesmente um fenômeno brasileiro. É a repetição, no Brasil, de uma experiência mundial. Há uma palavra que ocorre uma e outra vez na história da esquerda estadocêntrica em todo o mundo: traição. O fato da traição repetir-se tão seguidamente faz com que o conceito de “traição” se torne ridículo. O fracasso da esquerda não pode ser simplesmente questão de traição, da culpa de um líder nem de um partido: tem a ver com as mesmas estruturas. O fato de que não é apenas uma experiência brasileira significa que temos que ir mais além de uma crítica a Lula ou ao PT.
II

O problema não é Lula nem o PT, mas a democracia participativa. A democracia representativa não é nossa democracia, é a democracia deles, a democracia do capital. Não articula nosso poder, articula o poder deles, o poder do capital e dos poderosos. Nosso poder não é como o poder dos poderosos. É completamente distinto. Nosso poder é o poder-fazer, o poder criativo. Nosso poder-fazer é o poder de produzir e reproduzir a vida, porém, também o de fazer as coisas de outra maneira, o poder de mudar o mundo. Este é o poder que sentimos em um evento como este: uma confiança coletiva de que podemos fazer as coisas de outra maneira. Nosso poder é coletivo e social. O fazer é o centro de nosso poder, e é impossível imaginar um fazer que não seja social, que não dependa dos fazeres de outros, no passado ou no presente. Nosso fazer é sempre parte de um fluxo social do fazer. O desenvolvimento de nosso poder sempre implica o reconhecimento explícito da sociedade do fazer, implica, em outras palavras, um movimento de reunir e afirmar uma subjetividade social, um nós criativo. O poder dos poderosos é todo o contrário. Por trás de suas armas e bombas há um movimento de separação e fragmentação. O capital é um movimento de separação que fragmenta a sociedade do fazer. O capital toma o que os fazedores fizeram e diz: “isto é meu!”. O capitalista rompe o fazer, separa o feito do fazer e do fazedor, e com isso tudo se rompe, cada aspecto da vida. A respeito de tudo estamos rotos. Nós estamos rotos como sujeito social, despedaçados em milhões de indivíduos atomizados. O capital é a ruptura do fazer social, e quando o fazer se rompe, o ser impõe-se, o que é domina. Vemos os horrores do mundo, as crianças que morrem, a pobreza e a injustiça, as bombas que caem, e gritamos “Não! Não pode ser. Temos que mudar o mundo, temos que fazer outro mundo” E eles riem: Vocês são nada
mais que um grupo de indivíduos. Não podem mudar o mundo porque o mundo é assim, assim são as coisas”. Estão evidentemente equivocados. O que é, somente é porque nós o fizemos e o seguimos fazendo. O que é depende de nosso nosso fazer. O capital depende de nós. O capital se vê estável e eterno. Porém, não é. Existe somente porque nós o criamos. Não porque o criamos há duzentos anos, mas porque o criamos hoje. O problema não é abolir o capitalismo, o problema é deixar de criá-lo. O conflito entre nosso poder e o deles (nosso poder-fazer e o poder-sobre o deles) não é simplesmente um conflito entre o poder de baixo e o de cima. Nosso poder é o de poder fazer, de criar, da sociabilidade. O poder deles é o de separar, individualizar, o poder do que é. Nosso poder se dissolve; o deles, se enraíza. São dois movimentos muito distintos, duas lógicas muito distintas, duas linguagens distintas, duas formas de organização opostas. É importante reconhecer isto, porque eles (os poderosos, os capitalistas) sempre estão tratando de nos fazer devorar sua lógica, sua linguagem, sua forma de fazer e pensar. Fazem isso de muitas maneiras, e uma das maneiras mais importantes é através da democracia, convidando-nos a jogar seu jogoda democracia.
III

Nossa democracia não é como a democracia dos poderosos. Da mesma forma em que há dois tipos de poder, também há dois tipos de democracia: a deles, dos poderosos; e nossa democracia, a da resistência. Representação é o princípio da democracia deles: deixe que alguém tome seu lugar! Participamos nas decisões do Estado, dizem, escolhendo nossos representantes. Não há outra forma, porque os estados não são como as pólis gregas. Seria impossível reunir cinqüenta ou cem milhões de pessoas em uma assembléia, portanto, a única forma em que a democracia pode funcionar é através da eleição de representantes, dizem. Portanto, nas sociedades modernas, a democracia significa representação. Nas eleições escolhemos livremente quem vai falar por nós, nos representar no parlamento e formar o governo. Se não gostarmos, podemos trocá-los depois de três ou quatro anos. Votando participamos no governo do país. A representação significa democracia e democracia é boa, dizem. Mas então, por que é um desastre? Por que não funciona? Por que nos sentimos excluídos? Por que, sob Bush e Blair, a democracia converteu-se em uma arma de destruição massiva? Por que elegemos Lula, para mudar a sociedade, e não se passa nada? É porque a representação nos exclui no lugar de incluir-nos. Nas eleições, escolhemos alguém para falar por nós e tomar nosso lugar. Excluímos a nósmesmos. Criamos uma separação entre aqueles que representam e nós, os representados. E congelamos essa separação no tempo, dando-lhe uma duração, excluindo-nos como sujeitos até que tenhamos a oportunidade de renovar a separação nas próximas eleições. Cria-se um mundo da política, separado da vida cotidiana da sociedade, um mundo da política povoado por uma casta distinta de gente que fala sua própria linguagem e tem sua própria lógica, a lógica do poder. Não é que esta gente esteja totalmente separada da sociedade e seus antagonismos: precisam preocupar-se com a próxima eleição, as pesquisas de opinião pública e os grupos organizados de pressão. Porém, veêm e escutam somente aquilo que está traduzido no seu mundo, sua linguagem e lógica. Ao mesmo tempo, cria-se um mundo da ciência política e jornalismo científico, que nos ensina a linguagem e lógica peculiares dos políticos e nos ajuda a ver o mundo através de seus olhos cegos. A representação é parte do processo geral de separação que é o capitalismo. É totalmente falso pensar no governo representativo como um desafio ou como desafio potencial ao capital. A democracia representativa não é oposta ao capitalismo: é mais uma extensão do capital. Projeta o princípio da dominação capitalista (ou seja, a separação) dentro de nossa oposição ao capital. A representação consolida a atomização dos indivíduos (e a fetichização do tempo e espaço) que o capital impõe. A representação separa os representantes dos representados, os líderes das massas, e impõe estruturas hierárquicas. A esquerda sempre acusa os líderes e os representantes de traição, mas não há nenhuma traição. A traição não é um ato dos líderes que são parte intregrante do processo de representação. Traímos a nós mesmos quando dizemos à alguém: “Tome você meu lugar, fale por mim”. Eleição é traição.
IV

Já basta de representação! Já basta de representantes! Que se vayan todos! O grito dos argentinos é um grito contra os políticos, contra todos aqueles que desejam nos representar e querem tomar nosso lugar. Que se vayan todos é um grito que ressoa em todo o mundo, porque em todo mundo as pessoas estão fartas dos políticos profissionais, aqueles miseráveis que tomam nosso lugar e nos representam Não é um grito contra a democracia, mas por outro tipo de democracia: uma democracia sem representantes, que não nos exclua e que seja nossa. Estamos reinventando a democracia. Temos que começar outra vez, desde o princípio, e o princípio é o grito, o grito de não à sociedade como existe. O grito de não ao capitalismo. O grito é tão óbvio no Brasil como no México: um grito de não a este contraste terrível entre uma potência humana tão exuberante e uma miséria tão espantosa. A única forma em que podemos viver como humanos é dizendo não, gritando não. Porém o não contém um sim, um projeto, uma projeção de outro mundo. Gritar não a este mundo é dizer que outro mundo é possível. Outro mundo é possível porque nós podemos fazê-lo diferente. Podemos fazer diferente se trabalharmos para determinar nosso próprio fazer. O grito de não e o projeto que contém outro mundo implica um impulso à auto-determinação. Não, vocês não vão decidir por nós. Nós mesmos vamos decidir. Reinventar a democracia significa articular este impulso à auto-determinação. O impulso à auto-determinação não é a auto-determinação: não pode haver auto-determinação em uma sociedade capitalista, simplesmente porque o capitalismo está baseado na negação da auto-determinação. Esse impulso é um movimento, um mover, baseado na negação, no não. Não temos uma auto-determinação, o que temos é um não à determinação alheia e o impulso à auto-determinação. Começamos no não e nos movemos para fora. Em outras palavras, começamos nas fissuras, nas fendas da dominação capitalista. Começamos no não, desde as negações, as insubordinações, as projeções contra-e-mais-além que existem por todos os lados. O mundo está cheio de fissuras desse tipo, de negações. Em todas as partes do mundo há pessoas dizendo, invidualmente ou coletivamente “Não, não vamos fazer o que o capitalismo nos diz: vamos moldar nossas vidas como queremos”. Às vezes, estas fissuras são tão pequenas que nem os rebeldes, mesmo, estão conscientes de sua própria rebedia. Às vezes, são tão grandes como a Selva Lacandona – e quanto mais nos concentramos nelas, mais começamos a ver o mundo. Não como um sistema fechado de dominação total capitalista, mas como um mundo cheio de fissuras, negações e resistências. Um mundo grávido de outro mundo. Cada fissura é um impulso rumo a esse outro mundo -- ou seja, um impulso à auto-determinação. Nossa luta é para estender, multiplicar, aprofundar e fortalecer essas fissuras. Estamos falando de revolução. Porém, na única forma pela qual é possível concebê-la agora, como uma revolução intersticial, molecular, através das fissuras. Esta é a reinvenção da democracia, uma reinvenção que já está em andamento. Este é um processo fragmentado; porém, universal e com raízes profundas. Suas raízes estão na prática cotidiana das pessoas. Normalmente, vamos até as pessoas que queremos. Discutimos, buscamos um consenso, desenvolvemos formas coletivas de tomar decisões, formas horizontais. Este é o significado da amizade e companheirismo. Muitas das lutas atuais contra o capitalismo no mundo tomam como princípio básico a idéia de que o movimento deveria ser uma extensão das relações de amizade e companheirismo desse tipo. A meta básica da organização é criar formas coletivas e horizontais de tomar decisões. Onde alguma forma de delegação for necessária, é importante que seja possível revogar a delegação de imediato, que seja de curta duração e, na medida do possível, que haja um revezamento de delegados. A reinvenção da democracia é, portanto, a renovação de uma larga tradição de organização na luta anti-capitalista. É a tradição da democracia conselheira, comunista ou assembleísta, discutida na análise de Marx sobre a Comuna de Paris. Que se pode encontrar nos sovietes da revolução russa, nos conselhos comunitários dos zapatistas, nas assembléias de bairro
argentinas e em mitos outros movimentos. Dizer que a democracia representativa não é uma forma de organização adequada para o impulso à auto-determinação não significa, certamente, que a democracia direta ou de conselhos não tenha seus problemas. A distinção entre delegados e representantes é crucial, mas sempre vai depender, na prática, da participação ativa das pessoas. Em uma comunidade pequena, também, há muitos problemas práticos relacionados àquelas pessoas que não podem ou não querem participar ativamente no processo, o peso desproporcional que adquirem as pessoas mais ativas ou articuladas, etc. Provavelmente, problemas desse tipo são inevitáveis, na medida em que um sistema perfeito de democracia direta implicaria a participação de pessoas emancipadas. Porém, não somos (ainda) emanciapados. Parecemos mais como portadores de deficiências, que se ajudam uns aos outros a caminhar, e caem freqüentemente. Sem dúvida alguma, há alguns que podem caminhar melhor que outros. Nesse sentido, a existência de algum tipo de vanguarda provavelmente não pode ser evitada. A pergunta é: estes semi-deficientes deveriam avançar correndo – como vanguarda –, deixando os outros engatinhando no chão e gritando “não se preocupem, vamos fazer a revolução e resgataremos vocês”? (sabemos que não vão fazê-lo). Ou tratamos de avançar no mesmo passo, ajudando os mais lentos?
Provavelmente, não se pode pensar na democracia direta como um modelo ou uma série de regras -- mas como orientação, como luta incessante para destilar o impulso à auto-determinação social que existe dentro de nós. Não pode haver modelo fixo precisamente porque o impulso à auto-determinação é o movimento de uma pergunta. O que é importante não é o detalhe, mas o sentido do movimento: contra a separação e substituição, pelo fortalecimento da comunidade de luta baseada no reconhecimento mútuo da dignidade humana.
V

O que fazer, então, com nossa desilusão? Em todo o mundo existe o mesmo desencanto, uma crise de confiança no Estado e na possibilidade de conseguir mudanças através da democracia representativa. Uma crise de confiança nos partidos políticos. A pergunta para nós é como reagimos a essa crise. Dizemos: “vamos lutar por um Estado justo com uma democracia representativa genuina e fundar um partido político novo e honesto, que realmente represente os interesses de seus membros”. Ou dizemos simplesmente “Não ao Estado, não à democracia representativa, não aos partidos políticos”? A resposta é clara. Dizemos não ao Estado, à democracia representativa, aos partidos políticos. Não podemos mudar o mundo através do Estado, nem através da democracia representativa e dos partidos políticos. Estas são formas de organização que nos excluem, não articulam o impulso à auto-determinação. Não estou dizendo que nunca deveríamos votar. Provavelmente, em algumas circunstâncias há sentido em fazê-lo. Porém, está claro que não podemos mudar o mundo através das eleições. A crise da democracia e dos partidos não é um problema: é uma oportunidade de reinventar a democracia e mudar o mundo.

*John Holloway é autor do livro Mudar o mundo sem tomar o poder, ed. Boitempo

Tradução: Bárbara Ablas

07/12/2004

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