quarta-feira, 7 de maio de 2008

Direito de reprodução

Por Simone Iwasso
A brasileira que faz aborto é uma mulher casada, que já é mãe, trabalha fora e tem, em média, entre 20 e 29 anos. É católica e tem alguma escolaridade - completou ao menos os oito anos do ensino fundamental. A decisão pela interrupção da gravidez é tomada com o parceiro. Por se tratar de uma prática ilegal no País, ela opta por métodos caseiros, como ingestão de chás e ervas, misturados ao uso do misopostrol, medicamento de uso restrito cujo nome comercial é Cytotec. Apenas 2,5% das mulheres que abortaram ficaram grávidas ao terem uma relação eventual.
A adolescente que opta pelo aborto também engravida dentro de uma relação estável. Decide com o namorado que vai colocar um término na gestação e, perto dos três meses de gravidez, usando os mesmos métodos da adulta, enraizados num conhecimento popular, aborta. São principalmente jovens entre 17 e 19 anos. Além disso, tendem a engravidar novamente após dois anos.
O perfil da mulher que interrompe a gravidez foi traçado pela primeira vez em um levantamento em 2.135 pesquisas de campo feitas em universidades e publicadas em periódicos científicos nos últimos 20 anos. Mesmo assim, o perfil é incompleto, pois está baseado nos registros existentes, que são das mulheres que chegaram aos serviços públicos após usarem métodos abortivos. Desse modo, não inclui abortos feitos pelas mulheres de classes média e alta em clínicas e hospitais privados.
O trabalho, obtido pelo Estado com exclusividade, foi realizado pela Universidade de Brasília (UnB) e pela Universidade Estadual do Rio (UERJ) e tem apoio do Ministério da Saúde e financiamento da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas)."Os dados mostram que não é a mulher considerada leviana que aborta. É uma mulher comum, que vive uma relação estável e que já tem um filho", afirma uma das autoras do estudo, a antropóloga Débora Diniz, da UnB. "É depois de ser mãe, de saber o que é a maternidade, que ela decide com o parceiro pelo aborto. É uma decisão responsável e baseada na experiência", complementa.
Débora explica que o objetivo da pesquisa foi justamente reunir todos os dados existentes sobre o aborto no Brasil, colhidos por pesquisadores das mais variadas vertentes, contrários e favoráveis à descriminação, para permitir que o tema seja debatido com base em fatos e não em suposições."Muita gente opina sobre o aborto sem ter dados, com base apenas em crenças morais ou opiniões pessoais. É comum ouvir dizer, por exemplo, que a mulher que aborta se arrepende e sofre de problemas mentais. Isso não foi encontrado em nenhuma pesquisa", afirma.

1,5 MILHÃO AO ANO
O número total de abortos feitos no País é outra questão analisada pelo trabalho. Estimativas conservadoras, baseadas nos registros do Sistema Único de Saúde (SUS), apontam para pelo menos 1,5 milhão de abortos todos os anos. Ela é feita levando em conta estudos médicos que mostram que a cada 100 mulheres que abortam de maneira insegura, 20 têm problemas e procuram o serviço público com dores, hemorragias ou infecções.
Apesar de aceito pelos especialistas, e também pelo Ministério da Saúde, grupos religiosos tendem a questionar o número, dizendo que os dados do SUS não são tão confiáveis e que, portanto, o índice seria mais baixo.A pesquisa, no entanto, mostra o contrário. E dá indícios de que deve ocorrer, em média, pelo menos o dobro de abortos anuais no Brasil, levando em conta as mulheres pobres que recorrem ao SUS e as das classes média e alta que permanecem em silêncio no mundo privado. E o número não está baseado em estimativa, mas em pesquisas populacionais, feitas por amostragem estatística em várias regiões.
Nesse caso, estudos mostraram que, na Região Norte, por exemplo, há um índice de 40 abortos para cada 100 mulheres em idade fértil. Para as regiões Sudeste e Sul esse índice fica em torno de 20 abortos para cada 100 mulheres. "É alto, mas muito mais próximo da realidade. Uma mulher pode omitir que fez um aborto, mas nunca diria que fez um quando não fez", explica a outra autora da pesquisa, a médica especializada em saúde pública Marilena Corrêa, da UERJ.
Para se chegar a esses dados, costuma-se usar duas metodologias: uma na qual um entrevistador pergunta diretamente se a mulher já fez ou não um aborto e outra na qual a própria mulher recebe uma ficha, preenche anonimamente e coloca em uma urna.

PREVENÇÃO
Outro ponto do senso comum que o levantamento questiona é que a mulher que aborta engravidou por desconhecer ou não ter acesso aos métodos contraceptivos. De maneira geral, ela os usa ou já usou em algum momento. E as adultas e mais velhas o fazem muito mais do que as adolescentes."Gravidez indesejada acontece em todas as classes sociais e por diversas razões, infelizmente", afirma o médico Thomas Gollop, especialista em medicina fetal da Universidade de São Paulo (USP). "Por isso, não resolve o argumento de que em vez de discutirmos o aborto, aumentar a oferta de métodos de contracepção resolveria o problema", afirma.
O médico reafirma a importância da divulgação e aumento da oferta de métodos de planejamento familiar, mas ressalta que há uma condenação da mulher por ficar grávida sem planejar. "No Brasil, culturalmente olhamos para a mulher como irresponsável por seus atos, mas na verdade ela é responsável na maioria dos casos, inclusive quando opta por terminar a gravidez."A questão, coloca ele, não é ser favorável ou não à opção dela pelo aborto. "A questão está colocada de maneira equivocada. Ninguém é a favor do aborto", afirma. "Mas somos a favor de que essa mulher casada, mãe, que trabalha, deve ser presa por ter se submetido a um aborto?" .
Fonte: O ESTADO DE S.PAULO, 20 DE ABRIL DE 2008

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