terça-feira, 14 de abril de 2009

"Uma lei errada" Mesmo?

Muitas pessoas devem ter lido o texto do poeta Ferreira Gular no caderno Ilustrada da Folha de domingo. Caso não, veja "Uma lei errada" aqui. Ali ele se presta a um enorme papelão e nos causa um tipo de mal estar pelo grande desconhecimento sobre políticas públicas na saúde mental e naquilo que pensa ser um direito. Escreve ele sobre o "desastre" da Reforma Psiquiatra e tenta , de um modo no mínimo inconseqüente, fazer críticas a rede substitutiva de saúde mental e a lei que a sustenta. Não vou me prender muito a isso agora e publico uma das melhores resposta que encontrei até o momento sobre o texto da Folha de S.Paulo. Lamentável Sr. Ferreira Gullar, realmente lamentável. Até mais.

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IMPOSSÍVEL SILENCIAR
Antonio M. R. Teixeira
(Médico, psiquiatra, professor associado do Departamento de Psicologia da FAFICH-UFMG, editor da revista Clinicaps.com.br, destinada à publicação de artigos em Saúde Mental).

Indiferença e Silêncio. Talvez tal binômio fosse a melhor resposta ao artigo “Uma Lei Errada”, publicado na Ilustrada da Folha de São Paulo, nesse domingo último, destinando-o à vala comum dos panfletos inconseqüentes. Talvez não valesse a pena responder a uma tal infâmia se o artigo tivesse sido escrito pelo representante de uma confederação qualquer dos hospitais ou dos laboratórios, mas não: estamos lendo um escrito assinado pelo autor do inigualável Poema Sujo, por um dos co-atores do Manifesto Neo-concreto, estamos falando do grande poeta Ferreira Gullar. Urge responder ad hominem, impossível diante dele se calar.

Pois então, vejamos. O autor ali se permite ser duro e ofensivo, talvez sob a pretensão de ser enfático e contundente. Cada palavra é cuidadosamente escolhida para ferir; a difamação é dirigida, sem restrição, ao conjunto dos autores e atores sociais do movimento da luta anti-manicomial. Resume-se a complexidade de um processo difícil, eivado de sucessos e obstáculos ao longo de quase 22 anos, como se ele não mais fosse do que a reação histérica de uma “classe média [que] quase nunca se detém para examinar as questões, pesar os argumentos, confrontá-los com a realidade”. Um deputado petista, citado sem ser nomeado, é acusado de ter declarado que as famílias dos doentes mentais os internavam para se livrarem deles. Lêem-se as aspas, mas não está indicada a fonte dessa declaração, o que deixa o autor mais à vontade para chamá-lo de “cretino”, porque supostamente “não sabe o que é conviver com pessoas esquizofrênicas” na família e desconhece a dor de um pai que tem quer internar um filho. Sua campanha, portanto, aos olhos do grande poeta, não passa de uma “demagogia como qualquer outra”, fundada em dados falsos ou falsificados. Num retorno ao politicamente correto, ele ainda acrescenta que a escolha do termo manicômio visa produzir uma distorção ideológica do sentido que hoje deveríamos atribuir aos nossos modernos hospitais psiquiátricos.

A difamação é grave, gravíssima, e deve chegar ao conhecimento de grande parte dos leitores dominicais da Folha de São Paulo. Impossível, portanto, manter-se em silêncio. A ética nos impõe um revide rápido. Valendo-nos de uma conhecida tática marcial, que consiste em combater se servindo do próprio movimento do adversário, responderíamos que esse escrito incorre repetidas vezes na irreflexão que ele inadvertidamente atribui aos que até hoje sustentam os princípios e conseqüências da reforma anti-manicomial. Façamos, pois, perguntas diretas, no presente do indicativo, deixando de lado as alusões e os condicionais: O que sabes para afirmar que alguém desconhece a dor de conviver com pessoas esquizofrênicas na família? Não, caro poeta, sofrimento mental na família não é, nem de longe, exclusividade do Sr. Ferreira Gullar. Sabes o quão freqüente e desolador era o abandono de doentes mentais pela família nos hospitais psiquiátricos, sobretudo nos serviços públicos? Podes me citar qual estatística sustenta que o número de doentes mentais abandonado nas ruas, dormindo sob viadutos, aumentou após a reforma anti-manicomial? Não, caro poeta, freqüentar serviços públicos, ao que tudo indica, não é a especialidade do Sr. Ferreira Gullar.

Mas isso não é tudo. O artigo, quem diria, parece ter sido escrito por alguém também versado em psicofarmacologia, cuja rispidez para falar da reforma anti-manicomial só é comparável à suavidade com a qual aborda as medicações neurolépticas, que, segundo ele, “não apresentam qualquer inconveniente”. Sancta simplicita! Já ouvistes falar da discinesia tardia, do parkinsonismo induzido, da acatisia...? A lista de efeitos colaterais é importante e extensa, somente com ela se poderia preencher essa página, lembrando-lhe que quem escreve essas linhas é um psiquiatra que não se furta a recorrer cuidadosamente aos medicamentos, quando eles se fazem necessários. Mas que nem por isso se permite destacar os neurolépticos como maior progresso no tratamento humanizado da doença mental, nem afirmar que “graças a essa medicação, as clínicas psiquiátricas perderam o caráter carcerário para se tornarem semelhantes a clínicas de repouso”. Tampouco posso aceitar que se reduza o restante da clínica a um repertório de divertissements, para retomar o termo tão lucidamente criticado pelo filósofo Blaise Pascal. Mencionas as salas de jogo, de cinema, teatro, piscina e campos de esporte, mas em nenhum momento encontramos, em seu escrito, sequer uma referência às verdadeiras práticas de condução clínica vastamente documentadas.

Estranha-me, enfim, caro poeta, que de tua arte máxima não tenhas se valido para fazer uma mínima menção à psicanálise, que, como a poesia, desde Mallarmé, sempre esteve atenta à afinidade estreita entre a loucura e a palavra que sobre ela mesma se dobra.


5 comentários:

Rita de Cássia de Araújo Almeida disse...

Prezado Ferreira Gullar
Certa vez você escreveu assim:

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?


Quero acreditar que quem escreveu a coluna deste domingo de páscoa tenha sido apenas uma parte de você. Uma parte que não conhece os enormes avanços que a Reforma Psiquiátrica Brasileira e a lei (à qual você se refere como idiota), puderam fazer na vida e na história dos milhares de familiares e usuários com os quais lidamos no nosso dia-a-dia de trabalhadores da Saúde Mental. Antes desta lei - que não foi daquelas que surgiu de traz da orelha de um cretino qualquer, mas resultado de um processo de mais de 10 anos de discussão, luta, enfrentamentos e negociações - familiares e pacientes tinham no manicômio único modo de ter e oferecer "tratamento" para suas loucuras ou doenças mentais. A mesma parte que desconhece que existem sim em nosso País e em outros: manicômios - com este nome ou com outros mais amenos - que continuam a ferir direitos mínimos aos seus "frequentadores" , manicômios que ainda mantêm pessoas encarceradas por 20, 30 ou mais anos, condenadas à reclusão simplesmente pelo fato de serem doentes mentais.
Não quero acreditar que um poeta sensível como você consiga enxergar na doença de seus filhos somente pessoas dispostas a matar ou morrer quando estão em crise, outra parte de você, certamente, conhece muitas outras facetas e singularidades que só quem convive de perto com a esquizofrenia ou outras doenças mentais pode experimentar. Por isso minha carta é um convite... um convite para que você escute a outra parte de si mesmo e desta história que você conta de maneira rasteira e parcial, uma história que tem lá suas dificuldades e imperfeiçoes (e bem sabe você que num mundo perfeito não haveriam poetas) mas é uma história bonita e legítima e que merece no mínimo respeito. Convido outra parte de você a conhecer um CAPS (ou serviço deste tipo) e escutar o depoimento de usuários e familiares que lá frequentam, e que puderam mudar suas histórias por causa das transformações que esta lei provocou em suas vidas. Uma parte de você também não sabe que a hospitalização, de qualquer natureza, não é mais a única solução para as chamadas crises, existe muito mais a ser fazer...Outra parte de você também ficaria encantado em saber que esta lei contruiu muito mais coisas do que descontruiu, descontruiu os manicômios, mas construiu um sem número de outras possibilidades, dispositivos, formas de tratamento, além de muita arte, música e poesia...Creio sinceramente que quem escreveu este artigo é a parte de você que ainda não conheceu a outra parte da história...entã o venha conhecê-la, tenho certeza de que nenhuma parte de você irá se arrepender.

saudações antimanicomiais

Rita de Cássia de A. Almeida
Juiz de Fora/MG
trabalhadora de CAPS e militante da reforma psiquiátrica brasileira há 12 anos.

moyses gotfryd disse...

Parabens ao Ferreira Gullar.
Ele é o porta-voz dos milhares que ficaram sem assistencia e dos familiares que nao tem a quem recorrer. Ele desnuda o jeito petista de "fazer ciência", misturando politica com conhecimento, o que nem sempre dá certo.Já li comentarios de gente que se diz "PhD" contrários ao Ferreira Gullar. PhD em que? Medicina? Certamente nao!

Alessandro de Oliveira Campos disse...

Caro Moyses, parece-me que algo lhe escapa nesse debate. Claro que podemos dizer o que pensamos livremente, mas dizer que o outro esta errado precisa mais do que opinião. Ferreira Gullar, como disse antes, prestousse a um grande deserviço ao debate sobre saude mental. Isso não quer dizer que ele não se sensibilize por isso, mas errou, e errou feio. Pelo que parece de seu comentário, você ainda acredita em "neutralidade" cientifica. Penso que esse debate já caducou a alguns anos. O olhar do cientista/pesquisador é contaminado por sua idéias, experiencias, e isso influencia o que está sendo visto, precisamos atentar para a objetividade e o modo de construir isso. O que te faz pensar que o direito aos debates devem ser apenas de médicos? Acho que você precisa rever seus conceitos sobre saude. Dizer que a Reforma Pisquiatrica é um retrocesso é o mesmo que dizer que o MST é um atraso para a reforma agraria! Você pode ate não concorda, mas não condiz com os fatos esse tipo de acusação. Sem a luta Antimanicomidal e o processo da Reforma, talvez ainda teriamos hospitais praticando a lobotomia!
Jeito petista? bom, acho tb que você desconhece o que chama direito a saude pública, SUS, descentralizar a atenção basica, coisas que pertencem a TODAS as pessoas, e não a um partido. Eu particularmente não gosto do PT, mas isso não me faz ter simpatia pela péssima administração psdb ou dem, esses sim comprometidos ideologicamente com os privilégios de uma elite que detona nosso povo. Caso o problema seja ser "petista" ou "antipetista" a conversa acaba aqui porque não perco meu tempo com esses preconceitos. O debate precisa acontecer para a mudança de uma cultura manicomial, que os donos de hospitais e a FBH querem manter, não apenas uma lei; isso é somente a ponto do iceberg.

Marco Correa Leite disse...

gostei do Blog...

grande Abraço

Trombine disse...

Ato falho...
Certamente seus amados filhos não se encontram em instituições como o Colônia em Barbacena, Minas Gerais. A verdade é que contra fatos e fotos, não há argumentos...