domingo, 5 de abril de 2009

Jericoacoara "à venda"

Téo Cordeiro*

O visitante, com um mínimo de criticidade e pertencente à esmagadora maioria da população brasileira que recebe até cinco salários mínimos, logo se espanta na chegada à Jericoacara, no belo estado ensolarado do Ceará: "Vende-se" é o verbo predominante em boa parte das casas residenciais desse distrito de Jijoca de Jericoacoara . Por mais óbvia que pudesse parecer a resposta, tive a preocupação de interagir com alguns nativos para aferir as causas do fenômeno. Antes disso, cabe contextualizar o cenário e seus personagens. Turistas cariocas, com seus vinte e poucos anos, pouco dinheiro e muita disposição, vindos do Piauí debaixo de chuva, numa segunda-feira de março do corrente ano (lembrem-se que a alta temporada começa em julho/ setembro em Jeri). A entrada ao Parque Nacional de Jeri, onde se localiza Jericoacoara, passa necessariamente por Jijoca do Ceará e, sendo assim, o cartão de visita pega de surpresa qualquer visitante com nosso perfil econômico.
Sessenta reais por pessoa é o preço para o deslocamento até Jeri, num trecho de aproximadamente dez quilômetros. Com muito custo persuasivo conseguimos descobrir um roteiro alternativo que nos levaria por cinco reais: basta chegar a Preá, distrito no litoral próximo dali.

Enfim a praia, considerada a mais bonita do mundo, se aproximava e o percurso até lá denunciava que encontraríamos um lugar singular. Aqui começava nosso intuito investigativo ao se deparar com as abundantes placas: Vende-se! As hipóteses começavam a se delinear na busca por uma pousadinha acessível aos jovens cariocas. Daí se inaugura um novo desafio: compreender os diferentes sotaques híbridos na fusão com nosso português. Italiano, alemão, francês se misturam com tal naturalidade, compatíveis com a ocupação estrangeira desse território cearense. Com a situação, o espírito de esquerda e nacionalista já aflorava, enquanto mais à frente o Resort "Mosquito Blue" ostentava sua vinculação com Visa e Mastercard, encontrados também em todas as fachadas de Jeri.

Naturalmente o "merchan" não se direcionava para os resistentes moradores, que me relataram - não se compra mais nada com R$ 50 reais aqui! Uma disputa desigual logo confirmada por um outro morador (personagem importante que ganhará identidade mais à frente): eles veem capitalizados e fica difícil pra gente concorrer. "Eles", com o monopólio de grande parte dos empreendimentos, somado a alguns empresários paulistas e sulistas, parecem dar as cartas em um ambiente que vai nos remetendo aos períodos coloniais em que a expropriação de nossas riquezas - agora travestida dentro setor de turismo - com a utilização de nossa mão-de-obra. A diferença talvez esteja nas ferramentas de cooptação ideológica que, do ponto de vista dos atuais donos de Jeri, prometem uma melhor condição de vida, geração de renda e possibilidades de ascensão econômica. Os capitalistas estrangeiros parecem estar sendo bem-sucedidos nessa empreitada, como ouvimos de um trabalhador cearense local: "O povo aqui não quer ganhar dinheiro!". Para os marxistas de plantão, isso tem a ver com um processo de obscurecimento das relações de classe baseada na extração da mais-valia que repercute diretamente na geração da Alienação do Trabalho.

Agradecemos à Marx e fomos a busca das estratégias contra-hegemônicas locais. Com sorte, ainda na saga por um lugar pra dormir - que já se esgotava depois de nos depararmos com um indecifrável italiano responsável pelo Albergue da Juventude, vejam vocês -, encontramos Zé Patinha, cearense dono de uma simpática pousadinha e de um bom humor contagiantes. Alegre e preocupado com os rumos de Jeri, Zé Patinha é enfático: são poucos os que conseguiram se manter depois da chegada deles. Zé parece estar convicto em seu diagnóstico e nos conta que a venda das casas dos moradores é única maneira encontrada por eles à subsistência em decorrência das mudanças que o distrito sofreu nos últimos dez anos.

Nessa nova modalidade de exílio promovida pelo capital estrangeiro e seus perceptíveis interesses lucrativos, pontua-se a histórica e ainda persistente conivência do Estado brasileiro, ao não garantir condições para que seus habitantes naturais permaneçam em suas terras e possam retirar delas os recursos para o sustento. Que, no caso de Jeri, poderia se refletir na massificação de linhas de financiamento, em consonância com a capacitação na área de administração hoteleira, para oportunizar a retomada da Pedra Furada e Duna do Pôr do Sol à condição de patrimônio ambiental brasileiro. A nós, cariocas e brasileiros empobrecidos materialmente e espiritualmente, cabe nos relacionar de outra forma em nossas viagens, procurando interagir mais horizontalmente e com senso crítico à cadeia de relações desiguais a que está sendo submetido nosso povo (vide nossa vizinha Búzios, ou as Praias de Pipa e Porto de Galinhas). A volta aos solos cariocas, ressignificados com as interações sociopolítica-geográfica-antropológica em Jeri, nos mostrou que é possível fazer outro tipo de viagem com um olhar mais atento às expressões da questão social que saltam aos olhos, para além dos encantos naturais. E força ao Zé Patinha !

* Téo Cordeiro
RESIDENCIA MULTI EM SAÚDE DA FAMÍLIA/UESPI

Um comentário:

Priscila disse...

tudo à venda!!
compre! consuma!
eis o imperativo dos tempos...
modernos?! pós-modernos?!
não há novidade na expropriação do homem pelo capital, mas sempre haverá nossa digna-ação de não naturalizarmos tais fatos, de enxergarmos também o alternativo, as resistências; e é deste lado que ficamos e falamos.
belas palavras teo, ainda mais lindas as vivências.