quinta-feira, 24 de abril de 2008

A sutileza do título

Existem momentos que depois de alguém falar com tanta precisão sobre um determinado assunto, nem vale mais continuar a debater e só nos resta concordar. Veja essa tal Virada Cultural e como apenas posso corroborar com o Bruno Ribeiro. Já começa pela sutileza do título. O texto faz referência a Virada Cultural de um ano atrás, mas continua bem pertinente. Leiam até o fim que vale cada linha.

Virada cultural é o caralho!
por Bruno Ribeiro
"Durante toda a semana passada só se falou na Virada Cultural Paulista, que pela primeira vez teve uma edição campineira. De sábado para domingo foram 24 horas ininterruptas de música, teatro, cinema e exposições. Trabalhei na cobertura do show do grupo Sistema Negro, no Jardim Ieda. A expectativa (não a minha, evidente) era de que o show de rap, que ocorreu diante do sexto distrito policial de Campinas, acabasse em confusão - à exemplo do show dos Racionais, em São Paulo. Típica associação preconceituosa que a classe média faz do rap com a violência - reforçada depois que a Rede Globo culpou o público pelo confronto com a polícia militar. Não cabe agora discutir de quem foi a culpa pela pancadaria, mas é sempre bom lembrar que o problema é o homem e não o lugar de onde ele vem. Só discorda quem não conhece a periferia de perto.
Eu já sabia que seria um show tranqüilo. Depois fui para a redação escrever a matéria, mas não quis participar da Virada Cultural. Comprei um vinho na volta e fiz uma sopa na santa paz do lar, ouvindo a música que gosto, na altura que gosto, na companhia de quem gosto. E isso me basta. Não participei em nenhum momento do oba-oba geral. Primeiro porque, danem-se os politicamente corretos, esse papo de virada é coisa de viado. E segundo que não tenho mais paciência para shows. Não agüento mais encontrar a mesma "turminha da balada" ou, como gosto de chamar, a "turminha do u-hu". Ela está no "samba-rock pra quem começou a gostar de preto há pouco tempo"; ela está no "rock psicodélico com influências de folclore pernambucano e literatura de cordel"; está no "forró sem cabeça-chata para meninas que dançam ciranda" e agora também na "gafieira que acha que é gafieira só porque tem sax e trombone na formação, mas que não canta samba sincopado e nem samba de breque". Estou cantando a bola em primeira mão: atentem para o surgimento da mais nova moda universitária: a gafieira. E eu, como estou cada vez mais decidido a firmar um pacto com a vida, pacto de só viver o que for verdadeiro, me recuso a estar nesses lugares onde todo mundo se acha o i do mississipi.
A Virada Cultural é feita para essa classe média que, além de não ser produtora de cultura, não entende picas do assunto (embora se ache a grande mantenedora das vanguardas artísticas) e se limita apenas a consumir shows sem qualquer critério. Aliás, o critério que ela conhece é sempre o da quantidade e nunca o da qualidade: se o show está lotado, então é bom. E mesmo assim não pode estar lotado de pobre: tem que ter muita "gente bonita". Cultura no cu dos outros é refresco. Essa é a mentalidade da classe média e é por isso que me recuso terminantemente a compartilhar de seus mesmos gostos e interesses. Venho da classe média também, mas nunca aderi ao seu modo de vida. Estou seguro de não estar falando nenhum absurdo.Vou explicar melhor a minha bronca. Antes, porém, peço licença ao Eduardo Goldenberg para roubar descaradamente uma citação do Ariano Suassuna publicado primeiro no seu Buteco do Edu:
O Ariano disse tudo: se for preciso assumo essa briga sozinho, como já tenho feito nos últimos dez anos. O país ainda não está pronto para ser nação e é por isso que alguém tem de meter o dedo no nariz da classe média e dizer para ela: "Você está errada". Também estou certo de não cometer nenhuma injustiça. Injustiça, por exemplo, é o que fizeram com o samba e o choro na programação da Virada. À eles foram dedicados os piores horários e locais: ao grupo Choro Bandido, que está lançando seu segundo CD e tem entre seus integrantes craques como Chiquinho do Pandeiro e Daniel Romanetto, foi reservada uma apresentação às 8h de domingo, no Bosque dos Jequitibás. A mentalidade é: "chorinho é coisa de velho; velho acorda cedo; chorinho é bucólico; manda o chorinho para o bosque". O samba também foi tratado como moeda de troca: apenas Ilcéi Miriam e o grupo do Cupinzeiro foram convidados, entre tantos grupos bons que poderiam ter ocupado outros horários do programa. Sem falar que samba é sempre na praça e nunca no teatro ou nas grandes salas de espetáculo. E também ao samba deram um horário ingrato, quando as pessoas estavam saindo do trabalho. Muita gente saiu da periferia para ver o samba e não conseguiu chegar a tempo, porque dependia de ônibus e às seis da tarde não há ônibus para quem mora do outro lado da ponte. Engraçado como as duas maiores expressões da música popular brasileira são sempre tratadas com desdém pelo poder público e pela classe média - a mesma que gosta de "valorizar" o samba e "resgatá-lo" de algum lugar que ninguém sabe qual seja.
As noites são reservadas sempre aos ritmos estrangeiros (rock, blues, jazz) ou à música com discurso pop de bandas como Cordel do Fogo Encantado. O argumento - posso até ouvir vozes aí do outro lado da tela - é de que o samba não é capaz de lotar o espaço público. Não fossem a hipocrisia e o eufemismo, diriam abertamente: "O samba não é capaz de lotar o espaço público de gente bonita, de gente da nossa laia". Mas então é a hora de nos perguntarmos por que e para quem é feita a Virada Cultural. Para que tipo de público os governos municipais movem seus esforços e investem o dinheiro de nossos impostos? E, Deus meu, de onde tiraram a idéia de que em Campinas não há cultura acontecendo o ano todo?
Domingo, enquanto muita gente ia para a Estação Cultura gritar u-hu, eu fui para a periferia, onde me criei com muito orgulho. E só me arrependo de não ter uma máquina fotográfica para mostrar aqui no blog, batendo o pau na mesa, que o samba não precisa de cartaz e nem do aval da classe média para acontecer e reunir muita gente. A roda, aliás, não é show, é cultura no sentido profundo do termo. Está acontecendo porque tem de acontecer, porque é passada de pai para filho, porque é uma necessidade e toda a comunidade está ao seu redor, confraternizando, dividindo a garrafa de cerveja, o churrasquinho feito na hora, a alegria e a tristeza da vida real. A vida de verdade, sem que ninguém precise fazer tipo para se sentir inserido ou representado. As relações não passam pela questão da roupa, do padrão de beleza, do julgamento moral. Todo mundo é truta, todo mundo é irmão, a partir do momento em que o samba pega e você o respeita. Estou falando do Pagode da Vó Tiana, terreiro localizado na Vila Teixeira, comandado pelo parceiro Juninho Fortaleza (com quem emplaquei Salve a Defumação, um sambão de macumba que já anda nas bocas da negrada da Vila)."Pessoal, andaram dizendo que a roda de hoje ia ficar vazia por causa da Virada Cultural. Falaram que tava todo mundo indo ver o jazz e ver o rock. E a Vila Teixeira disse não. Todos aqui disseram não à esse papo furado de que a cultura estaria lá, do outro lado da ponte, e que a gente só teria uma opção: atravessar a cidade para poder se divertir um pouco. E nós dissemos não. Dissemos que não é verdade. Porque nós somos a cultura de Campinas. Ela está aqui, na periferia. E não precisa ser convidada para subir no palco. A casa cheia de amigos em dia de samba é a prova de que a nossa cultura é viva e é forte" - disse o pandeirista Cilão, na abertura dos trabalhos, sendo aplaudido de pé por cerca de 300 pessoas.
Lá encontrei Amaury "Velha Arte" e Nelsinho Fidélis - este o maior cantor de samba do Estado de São Paulo. E banco a afirmação se alguém duvidar. Terminada a roda - que contou com a presença de Sombrinha, parceiro de Arlindo Cruz - fomos de táxi para a Vila União, no maravilhoso Bar do Neto. Detalhe: fomos tão longe que o taxímetro marcou R$ 80 ao final da corrida. Adivinha se pagamos? É claro que não! Na quebrada é todo mundo camarada e uma mão lava a outra. E o Amaury tinha crédito na praça. De modo que o taxista também entrou para beber com a gente. E o samba comendo solto na mesa do butiquim. Candeia, Aniceto, Xangô. Vou repetir: Candeia, Aniceto, Xangô. Só sabe a dimensão disso quem é do riscado. E ouvir o primeiro verso é sacar que a cidade não conhece a cidade. E ainda tem muito o que aprender se quiser falar em cultura.
Pergunta se eu paguei a conta? Claro que não de novo! Aliás, acho que ninguém nunca paga a conta. Porque sempre tem alguém que se oferece para pagar a sua, da mesma maneira que alguém pagou a dele e assim por diante. No fim, vai ver, o sujeito pendura e acerta no fim do mês. Eu volto lá em outra oportunidade, deixo uma meia dúzia de Brahmas pagas na conta do cidadão, sem esperar nada em troca. E essas pequenas gentilezas vão gerando mais gentilezas, de modo que cria-se uma espécie de segunda família (para muitos, a primeira) e a roda de samba é onde estas relações se exacerbam, como que num transe. A roda de samba propicia um momento mágico em que você se sente realmente parte de um grupo e sua pessoa passa a ter alguma importância. O sujeito deixa de ser um consumidor passivo para ser agente histórico do que está acontecendo naquela hora. E a alma do bairro, da cidade, da pátria, da humanidade, percorre cada músculo e cada nervo de seu corpo. Sem luxo, sem frescura, sem glamour. Na vivência da única democracia que conheço, que é a roda de samba feita na mesa do buteco. Ali, onde a vida acontece e as pessoas são naturalmente felizes (sem esconder suas dores), a cultura é parte integrante do cotidiano. Não precisa que lhe dediquem um final de semana, nem que a classe média reconheça sua existência e seu valor. O povo lhe faz imortal, não é meu camarada?
PS: O endereço? Não dou nem sob tortura."

2 comentários:

cidinha da silva disse...

Virada deve ser mesmo coisa de viado, que não costuma ter problema em fazer coisas gostosas, em dar e comer gostosamente. Adjetivar algo como coisa de viado, neste caso, principalmente, em que o autor do texto fala coisas tão lúcidas e importantes de serem ditas, está além do politicamente incorreto. Não combina. Homofobia, ainda que light, travestida (opa, travesti deve ser coisa ofensiva)de piadinha inofensiva (o racismo também opera assim)não combina com alguém que defende valores humanos. Não dá liga. Ih, liga também deve ser coisa de viado, né? Vida longa aos viados!

Alessandro de Oliveira Campos disse...

Esta aí uma coisa importante para debater e pensar sim. Obrigado Cidinha por dize-lo e por nao deixar 'passar'...
beijos
Alessandro