quarta-feira, 2 de abril de 2008

A saudade do buteco

Muito mais do que sentir o bem conhecido "queria eu ter escrito isso", existem palavras que não as suas, mas que ainda assim te compreendem de um modo especial e te fazem sentir bem. Como a lembrança de um lugar pode causar tamanha confusão! Isso também pela sinceridade. Um bocado de vezes tentei explicar o que era um buteco e me faltaram condições para descrevê-lo com clareza, quem sabe até compará-lo, tentando apenas ilustrar esse espaço-encontro para o entendimento de quem não é brasileiro. Andamos por muitos bares e não dá para dizer que isso represente do modo que seja, sua real expressividade (a do buteco) e esse quase-lugar-comum conhecido de alguns brasileiros, é ficar no meu caso, louco de saudade. Ainda mais quando se está tão distante de casa e a única coisa que precisa é de amigos que você não tenha que explicar as coisas em detalhes, apenas o encanto do que acontece por ali, compartilhando dor e alegria, e talvez uma cerveja gelada e um tanto de amendoim...
Não tenho muito do que me queixar, não me entendam mal! Andei por lugares curiosos e provei iguarias saborosíssimas, mas não tem jeito, a gente sempre acha que tá faltando alguma coisa. Gente insatisfeita? Penso que não. Provei a cerveja inglesa nos pubs de Londres. Saboriei a sidra asturiana do norte da Espanha. Fiz bons amigos nas bebedeiras dos bares e cafés de Montreal. Presenciei o desabrochar das cerejeiras na primavera do Japão com o melhor sakê. Ainda assim, ficava a saudade. Parece-me que boa parte da dificuldade é a ausência de luta, mas agora me limito a buscar o lado mais suave e tranquilo. Afinal, quando você entende de onde é e porque vem, nada pode substituir isso. Nunca desaparece. Claro que crescemos e aprendemos, mas no melhor estilo confuciano, se nascemos para ser pardais não podemos ser morcegos.
Reproduzo o texto de Luiz Antonio Simas, que está em seu blog História do Brasil. Sem comentários. Genial. Leia e entenda por si mesmo.
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RESISTIR É PRECISO

Vivemos, e isso não é novidade alguma, uma época de uniformização dos costumes, fruto deste tal "mundo globalizado". Em todo canto desse mundo velho sem porteira, gerido por mega-redes transnacionais de telecomunicações, são consumidos os mesmos filmes, utilizadas as mesmas roupas, ouvidas as mesmas músicas, falado o mesmo idioma, cultuados os mesmos ídolos. Nessa espécie de culto profano, em que a vida cotidiana é regida pelos rituais em louvor ao mercado, esse profano deus, o bicho pega e as idéias morrem.
Vivemos o fracasso das ideologias e das grandes instituições. Eu, que trabalho com alunos adolescentes e adultos, percebo que as crenças e projeções de futuro da rapaziada foram substituídas pelo pânico cotidiano - do assalto e das doenças, no âmbito pessoal, às catastrofes ambientais, na esfera coletiva. Cria-se uma lógica perversa - como posso morrer de bala perdida ou sucumbir ao aquecimento global, preciso viver intensamente o dia de hoje.
Ocorre que essa valorização extremada do tempo presente é acompanhada pela morte das utopias coletivas de projeção do futuro. Não há mais futuro a ser planejado. Somos guiados pelos ritos do mercado e abandonamos o mundo do pensamento, onde se projetam perspectivas e são moldadas as diferenças. Restaram, talvez, duas tristes utopias possíveis, em meio ao fracasso dos sonhos coletivos - a de que seremos capazes de consumir tal produto e a de que poderemos ter um corpo perfeito.
Transformam-se , nesse tempos depressivos, os shoppings centers e as acadêmias de ginástica nos espaços de exercício da utopia, onde poderemos comprar produtos e moldar o corpo aos padrões da cultura contemporânea - o corpo-máquina dos atletas ou o corpo-esquálido das modelos.
É aí, e eu queria falar disso desde o início, que localizo na minha cidade o espaço de resistência a esses padrões uniformes do mundo global - o botequim. Ele, o velho buteco, o pé-sujo, é a Ágora carioca. No botequim não há grifes, não há o corpo-máquina, o corpo-em-si-mesmo, a vitrine, o mercado pairando como um deus a exigir que se cumpram seus rituais.
O buteco é a casa do mal gosto, do disforme, do arroto, da barriga indecente, da porrada, da grosseria, do afeto, da gentileza, da proximidade, do debate, da exposição das fraquezas, da dor de corno, da alegria do novo amor, do exercício, enfim, de uma forma de cidadania muito peculiar.
É nessa perspectiva que vejo a luta pela preservação da cultura do buteco, capitaneada por gigantes no assunto como meu mano Edu Goldenberg e o mestre Fernando Szegeri, como algo com uma dimensão muito mais ampla que o simples exercício de combate aos bares de grife que , como praga, pululam pela cidade.
A luta pelo buteco é a possibilidade de manter viva uma Ágora efetivamente popular, espaço de geração de idéias e utopias - sem viadagens intelectuais, mas fundadas na sabedoria dos que tem pouco e precisam inventar a vida - que possam nos regenerar da falência de uma (des)humanidade que limita-se a sonhar com a roupa nova e o corpo moldado. O botequim é o anti-shopping center, é a anti-globalização, é a recusa mais veemente ao corpo-máquina dos atletas olímpicos ou ao corpo doente das anoréxicas - doença comum nesse mundo desencantado.
Ali, entre garrafas vazias, chinelos de dedo, copos americanos, pratos feitos e petiscos gordurosos, daquele mar de barrigas indecentes, onde São Jorge é o deus e mercado é só a feira da esquina, a vida resiste aos desmandos da uniformização e o ser humano é restituído ao que há de mais valente e humano na sua trajetória - a capacidade de sonhar seus delírios e afogar suas dores e medos na próxima cachaça. É onde a alma da cidade grita - Não passarão!
Essa guerra, amigos, é muito mais significativa do que imaginam os arautos do bom gosto e da tolerância.
Abraço

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