terça-feira, 29 de abril de 2008

Lindo mesmo!

Depois de ler isso eu só posso querer voltar pra casa...
Do nosso jeitinho

É sabido – e tenho tantas vezes insistido aqui – que a meia-dúzia que sempre se arvorou em dona do Brasil nunca suportou o povo brasileiro. Não gostam da comida que gostamos, desprezam nosso modo de viver, nossa música, nossa sabedoria, menoscabam nosso jeito de rezar e curar os males do corpo e da alma. É claro que as coisas do povo que nunca toleraram vez por outra entram na moda por um motivo qualquer e aí é um tal de dar-se um jeito de tudo ficar mais “higiênico”, mais branco, menos mestiço – foi assim com o carnaval, a religião, está sendo com o futebol, os butiquins etc. - , mas isso é assunto pra outras conversas. Depreciam de tal modo as culturas nossas tributárias, que mesmo entre os negros que desprezam, julgam os nossos os piores, “bantos primitivos”; nossos índios estão no paleolítico enquanto os d’alhures construíram admiráveis civilizações; os portugueses são a nação mais atrasada da Europa, periferia do sistema, patrimonialistas medievais etc. Usam para nos medir uma medida extrínseca que nada tem a ver conosco e segundo a qual sempre seremos uma versão imperfeita do seu “ideal” importado: nossa democracia é atrasada, falta capitalismo, erudição, instituições deficientes...
Um dos traços mais singulares do povo brasileiro passou, por escamoteamentos ideológicos repisados até a exaustão, de exemplo da nossa brejeirice pacífica e algo gaiata, resistente e original, a uma espécie de pústula moral a ser banida dos projetos civilizatórios da modernidade (branca e capitalista, lógico): o famoso “jeitinho” brasileiro. Porque este sempre foi para nós uma capacidade de, apesar das adversidades, malgrado as impossibilidades decretadas pela conjuntura opressiva, contruir o entendimento, superar o aparentemente insuperável. Na base do “conversando é que a gente se entende”, nos orgulhávamos de uma habilidade de improviso lastreada no pouco apreço às soluções formais pre-determinadas, acreditando que a razoabilidade se constrói numa interação mediada pela atitude de entender e se fazer entendido. Mas os nossos senhores, que naturalmente usam e cuidam de sua condição, não conseguem conviver com essa fluidez embebida de encontro e possibilidade; aferrados às suas certezas, encastelados em sua condição de ditadores das regras auto-perpetuadoras, empedernidos pela lógica da eficiência a serviço da acumulação, trataram de fazer do “jeitinho” um traço de decrepitude de caráter típico dos povos atrasados, que dessa forma jamais poderiam aspirar ao mundo maravilhoso da modernidade e suas benesses.
Escrevia dias atrás sobre a falência da comunicação pela palavra falada. Num mundo que tem horror ao diálogo interpessoal – assim sempre me soou o modo europeu de vida, basta ver dois desconhecidos brasileiros se encontrando em outro país (normalmente se abraçam e comemoram o encontro, como se velhos amigos fossem) e o mesmo se dando com dois alemães... – é necessário ter regras precisas e claras para normatizar todas as situações, de modo que o mínimo espaço haja para a possibilidade de discussão. E mesmo essa, deve-se dar pelas vias institucionais, dentro dos limites formais previstos. Se um vizinho dinamarquês avançar seu muro meio metro sobre o terreno ao lado, ele responderá por isso nas barras dos tribunais, nos estritos termos da legislação. No Brasil, sempre houve a possibilidade, a menos a princípio, de se discutir a solução tomando um café no butiquim da esquina, com boa possibilidade de se deixar pra lá, contanto que o outro possa ficar com as mangas que pendem daquela frondosa mangueira sobre o seu quintal alheio... Ao menos enquanto viveu a palavra.
É por isso, meus caros, que nos desesperam as atendentes de telemárquetim que sempre responderão com seus 15 modelos de frases prêt a porter não importa se Rui Barbosa ou Leonel Brizola estejam a argumentar do outro lado da linha. É por isso que temos tanta dificuldade de aceitar os campeonatos por pontos corridos, onde o melhor vai sagrar-se campeão em 99% dos casos. O gosto pelo improviso, pelo imponderável mora em nosso espírito, faz parte da nossa natureza. A busca pelo desenvolvimento econômico e humano, por uma sociedade mais igualitária com acesso indistinto às utilidades que a modernidade logrou poduzir não pode tomar como padrão único um mundo pré-fabricado, engessado, previsível, sem espaço para a originalidade, para a criação e o improviso, fundamentos da singularidade individual e cultural. Singularidade é “jeito”, habilidade é “jeito”, solução é “jeito”. Quero meu jeitinho de volta!
E é por isso, contrariamente, que no butiquim se desconta cheque, se compra fiado (mesmo e sobretudo com a presença da plaquinha indefectível: “fiado só amanhã”), se deixa recado, se pede o prato assim ou assado, ao gosto do freguês , se decide sobre os destinos da humanidade... Tudo pode, desde que se converse! É por isso que no butiquim todos são irmãos de pratos e copos, mesmo que NUNCA se tenham visto antes. É por isso que no butiquim – e só no butiquim – ainda há jeito. Isto é, nos de verdade, os que ainda sobraram, “redutos últimos da palavra”, como quis o Poeta.

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