segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Pacifista de verdade não chama a polícia.

Todo aquele que possui coisas da qual não necessita é um ladrão.
Mohandas Gandhi

Diante de todo blá-blá-blá que os últimos acontecimentos no Rio de Janeiro estão despertando, tomo a liberdade de dar minha opinião sobre a violência. Durante um certo tempo de minha vida me considerei uma pessoa pacifista. Por volta dos meus 21 anos fui me familiarizando com a não-violência de Gandhi e entendendo suas práticas de desobediência civil. Fiquei durante anos encantado com aquelas histórias e com o poder de ação de suas idéias. Na verdade ainda tenho profunda adimiração por sua história e por todo seu esforço ético em viver aquilo que falava e pensava. Talvez vocês estejam perguntando por estou falando no pretérito, certo? Acontece que não estou mais tão seguro a respeito do que chamamos de pacifismo. Quem não gosta da paz? Com exceção de alguns pirados e megalomaníacos, todo mundo gosta. Acontece que fui me dando conta da enorme contradição nos discursos e práticas dos que se dizem pacifistas. Inclusive em mim. Vou tomar um exemplo para isso: o discurso da necessidade do Estado. Independente da qualidade do Estado que temos, com a exceção dos anarquistas e de alguns religiosos, o concenso é que o Estado é fundamentalmente necessário em nossas vidas. Sem ele, muitos dizem, reinaria o caos e a destruição. Tá lá no Leviatã parte da base de nossas estruturas filosóficas dos últimos séculos. O Estado é necessário não apenas para organizar a vida social e política de seus membros, mas principalmente para mediar as tensões entre os diferentes interesses dos muitos grupos que fazem parte dele. Por exemplo, no atual momento, o Partidos dos Trabalhadores tornou-se o principal agente para apaziguar a luta de classes. O Estado consegue isso particularmente porque reivindica para si o monopólio da violência. O uso legítimo da violência pelo aparelho estatal é o que garantiria a paz social. Instituições de controle e contenção com as diferentes polícias, sistema carcerário, escolas, fronteiras, forças armadas, são agrupamentos interessados em oferecer, teóricamente, o melhor funcionamento possível do Estado. Pois então, todas essas instituições essenciais para o Estado são detentoras da expressão de algum tipo de violência, mas como são estruturadas e intrínsecas ao Estado a violência supostamente é aceitavel, "o Estado pode", dizem alguns. Isso me faz crer que alguém que se autoproclama um pacifista no sentido gandhiano ou em qualquer outra não pode de forma alguma legitimar alguma dessas práticas organizativas. Você liga 190 em uma emergência? Você não é um pacifista. Você acredita nas fronteiras nacionais de seu país? Você não é um pacifista. Você acha imprescindível a manutenção de forças armadas como marinha, exército e aeronáutica? Você não é um pacifista. Você pensa que quem cometeu algum ato infracional deve ser preso, confinado e sofrer as consequencias? Você não é um pacifista. Você acha que crianças e jovens só aprendem na escola e que devem ser boazinhas e obedientes com os professores? você não é um pacifista mesmo! Eu particularmente sempre desconfiei dessas coisas todas, mas como não há inocentes aqui... Podemos aceitar o pensamento que na atual conjuntura esse é um dos pontos em que deve seguir a prática do menos pior? Pacifista mesmo não delega responsabilidade. Pacifista mesmo busca em si e no que está próximo superar suas contradições. Pacifista mesmo quer coerência e não teme conflitos. Pacifistas são generosos e sem falsa modestia. Pacifistas são cuidadosos com as ideologias todas. Pacifistas não se escondem no momento de se posicionarem. Gandhi disse que em uma situação de dificil escolha, que talvez tenha que escolher entre ser convarde e violento, seja violento! O covarde nunca se posiciona e tenta agradar a todos de acordo com sua conveniência. Todos querem muita liberdade, mas sem abrir mão de sua segurança. Desejando as duas coisas a única que realmente conseguimos é a mediocridade. A classe média, o cidadão médio, o pensamento médio, o trabalho médio, a vida média não quer abrir mão de nada. Pergunte a você mesmo: o que estou disposto a abrir mão? Desculpe perguntar, esqueci que só sua vida é tão sofrida e que não há nada que possa fazer... Lembremos que eu também não sou um pacifista e estou apenas questionando alguns lugares que nos são ensinados desde pequenos como naturais e inevitáveis. Vivemos tamanha margem de fascismos e banditismos que a barbárie começa a dobrar a esquina com mais força. Não compro a idéia gratuita do banditismo social, apesar de reconhecer enormes atos de solidariedade e urgência em suas práticas. Bandido social pra mim foi Pancho Villa, Julio Urtubia, Emiliano Zapata, os inúmeros grupos de resistência nos regimes militares da América Latina, mas todos eles considerados bandidos por quem utilizou exatamente o Estado para manutenção de suas classes sociais privilegiados e essas sim perigosas, canalhas e covardes. Bom, por conta de coisas assim não acredito em quase ninguém que se diz pacifista. Nem mesmo em mim! Por isso parei de falar isso. Quando meu comprometimento foi aumentando com a lutas sociais fui percebendo que minhas idéias para algumas pessoas eram muito ameaçadoras. Não porque eu as forçava a aceitá-las, mas porque em sua grande maioria são pessoas que de algum modo não irão abrir mão de seus privilégios e algumas dessas questões estão confrontando isso. Sejam eles grande ou pequenos, lá estarão com as bandeiras da paz e da diversidade, mas com uma prática extremamente contrária a isso tudo. Confundo mais então. Ocupação de terra improdutiva é de direito de quem não tem nada, mas latifúndio, mesmo produtivo, também é de direito? Somos livres para decidir o que beber, comer e vestir, mas escolher entre coca-cola e pepsi também é? A questão do que é de direito ou não, da liberdade e do arbítrio é mais tensa do que podemos imaginar. Diante das instituições do Estado é o mesmo, os limites nem sempre são claros e onde achamos que existe liberdade na realidade há apenas arbítrio. No capitalismo também funciona isso. O livre mercado é livre só no nome! E nesse exato momento no Rio de Janeiro idem. No fundo não importa quem proclama a maior verdade dos mandos e abusos de um grupo ou de outro. A atual condição é por melhor controle, dominação e arbítrio e não há nenhum lugar para uma prática de liberdade honesta. Apenas um engodo de fragmentos arbitrários. A disputa é entre Estado e crime abençoados pelo Deus Mercado para subjulgar a população. Não há em nenhuma dessas ações espaço para promoção de paz. O triste nisso tudo é, para variar apenas um pouquinho, ver a população mais pobre morrendo. Soluções não virão desses espaços e para mim tem que surgir também dos maiores interessados. Tem gente que diz que o povo dorme... será? Como nunca fomos um povo realmente pacífico um pouco de revolta popular não seria uma coisa de todo ruim. Então, mãos a obra!

2 comentários:

fv disse...

muito bom texto... gostaria de ve-lo (menos pessoalizado talvez)publicado para além desse blog.

Bem importante chegar ao ponto de problematizar os proprios limites nas escolhas... consciente de que as escolhas na escala do individuo para o consumo, o trabalho, a moradia, a compreensão de familia, etc, são e serão sempre escolhas coletivas para nossos processos cotidiamos... trata-se de ética, no sentido lucido e profundo de bem estar comum.

vale lembrar que o que está acontecendo no RJ tem haver com um plano desenvolvementista dos proximos anos com copa do mundo e olimpiadas, sediadas (também) na cidade maravilhosa.

sem desejar fazer uma apologia nacionalista, há realmente muito pelo que lutar por aqui nos proximos anos!

untitled disse...

Belo texto! Lúcido, contundente e com uma marca autoral. Gostei deste tom que desafia e, ao mesmo tempo, surpreende com perspectivas não-óbvias.