quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A camisa do time

Quando terminei de ler o texto abaixo me dei conta que precisava divulgá-lo aqui no Paladar. Acho que são sensibilidades como essa que não permitem alguns sonhos desaparecerem. Uma vez mais, um tema que para alguns é mera banalidade ou que não merece destaque, evidencia a alma e a condição de um povo. Não importa qual camisa toca seu coração, quando estamos diante de condições como essa, simplesmente perdemos todos.

Morre o Moto
Por Luiz Simas de seu Histórias Brasileiras.
Recebi hoje a confirmação de uma notícia lamentável. O Moto Club de São Luís, um dos principais clubes do Maranhão, dono de imensa torcida, encerrou as atividades no futebol profissional neste último dia 27 de agosto. A diretoria do Moto declarou não ter mais condições para manter o time diante das demandas do futebol atual [leia-se: falta grana].

Lamentável, rigorosamente lamentável , mais esse capítulo da transformação do futebol brasileiro em um ramo do big business, da consolidação dos clubes como valhacoutos de escroques travestidos em empresários e da proliferação de jogadores-celebridades desvinculados da história e das tradições dos times.

Morre o Moto no momento em que morrem também as camisas dos clubes, mantos sagrados transformados em vitrines de exposição de toda a sorte de produtos: telefonia celular, pomada de vaca, plano de saúde, leite condensado, funerária, montadora de automóvel, empresa da construção civil e quejandos. Dia chegará em que os escudos serão tirados da camisa para sobrar espaço pra mais um jabazinho e ninguém perceberá.

Morre o Moto em nome da gestão empresarial, da modernização dos estádios, do estatuto do torcedor, dos fabulosos investimentos para a realização da Copa de 2014, dos técnicos com salários de quinhentos mil reais, dos bandidos da bola e dos apóstolos dos gramados e seus moralismos de ocasião.

Morre o Moto como corre o risco de desaparecer a tradição do tambor de crioula do Maranhão. Nas palavras de um velho tambozeiro que conheci em Alcântara, os lugares onde se podia escutar o tambor são agora destinados ao reggae, para a alegria de antropólogos moderninhos e antenados que vêem em qualquer mistureba uma prova de vitalidade cultural. Viva o moderno e que se dane o eterno, goza o deus mercado.

Morre o Moto como pode morrer a Casa das Minas, venerável matriz da religiosidade afro-maranhense. As moças mais novas, dizem as velhas do tambor, não se interessam mais pelo legado de voduns e encantados e não há mais tempo disponível para o longo aprendizado do mistério demandado pelo Tempo maior.

E alguém, por acaso, sugere o que deve fazer o torcedor do Moto? Escolhe outro clube, com a naturalidade de quem muda de roupa e troca um objeto quebrado pelo novo? E os senhores de setenta e poucos anos que viram e viraram Moto durante a conquista do título da Copa Norte-Nordeste de 1947 e do Torneio Campeão dos Campeões do Norte em 1948?

E a nova geração - os netos dos fundadores e torcedores do velho Moto Club, o Papão do Norte, Rubro-Negro da Fabril - torcerá para quem? É simples. Os moleques torcerão, evidentemente, pela Inter de Milão, Barcelona ou Milan. Viva a globalização! Ou, na melhor das hipóteses e como é comum ocorrer, pelos clubes grandes do sul maravilha. Mas, ai deles, não terão o pertencimento que só o clube da aldeia é capaz de proporcionar.

O velho torcedor, e como é duro constatar isso, está morrendo. Em seu lugar surge o cliente dos tempos do futebol-empresa. Somos agora, os que queremos apenas torcer pelo time, tratados como clientes nos estádios, consumidores em potencial de jogos, pacotes televisivos, produtos com a marca da patrocinadora e outros balacobacos.

Morre o Moto como morre a aldeia, a terra, a comida da terra, a várzea, a esquina e o canto de cada canto. Morre o Moto como amanhã dançará, no corpo da última sacerdotisa do Tambor de Mina, o derradeiro encantado em pedra, flor, areia e vento da praia do Lençol.

Morre o Moto como morrerá, em alguma madrugada grande, o último tocador do tambor de crioula e com ele a arte de evocar no couro a memória dos mortos. Ninguém saberá como bater o tambor que convida os ancestrais a bailar entre os vivos. Seremos apenas - e cada vez mais - homens provisórios, desprovidos da permanência que só a ancestralidade e a comunidade garantem.

Morre o Moto enquanto se desencanta o mundo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi Alê,
até gosto de uma parte ou outra do texto, mas de outras, desconfio muito. Por exemplo, essa oposição simplória entre a suposta modernidade do Reggae e a tradição do Tambor de crioula. O Reggae no Maranhão (a não ser que as coisas tenham mudado muito e eu tenha perdido o bonde)é uma manifestação cultural mal vista pelas elites e pela classe média por ser eminentemente negra, frequentada por lavadores de carro, trabalhadoras domésticas, ex-presidiários, etc. Não sei se existe em São Luís um fenômeno como o tecno-brega de Belém do Pará que vem matando os bailes de brega. Não sei se já existe baile de Reggae para a turistada e para a classe média branca da cidade. Não sei se o Reggae de preto agiria para eliminar o Tambor de crioula. Repito, realmente posso estar desinformada, as coisas podem ter mudado,mas como você gosta de ver os vários lados do polígono, acho que vale a pena pesquisar.

beijo saudoso,
cidinha