quarta-feira, 8 de setembro de 2010

apesar do medo, uma mulher para amar

Vida ao Natural

"Pois no Rio tinha um lugar com uma lareira. E quando ela percebeu que, além do frio, chovia nas árvores, não pôde acreditar que tanto lhe fosse dado. O acordo do mundo com aquilo que ela nem sequer sabia que precisava como numa fome. Chovia, chovia. O fogo aceso pisca pra ela e para o homem. Ele, o homem, se ocupa do que ela nem sequer lhe agradece; ele atiça o fogo na lareira, o que não lhe é senão dever de nascimento. E ela - que é sempre inquieta, fazedora de coisas e experimentadora de curiosidades - pois ela nem se lembra de atiçar o fogo: não é seu papel, pois se tem o seu homem pra isso. Não sendo donzela, que o homem então cumpra sua missão. O mais que ela faz é às vezes instigá-lo: "aquela acha", diz-lhe, "aquela ainda não pegou". E ele, um instante antes que ela acabe a frase que o esclareceria, ele por ele mesmo já notara a acha, homem seu que é, e já está atiçando a acha. Não a comando seu, que é a mulher de um homem e que perderia seu estado se lhe desse ordem. A outra mão dele, a livre, está ao alcance dela. Ela sabe, e não a toma. Quer a mão dele, sabe que quer e não a toma. Tem exatamente o que precisa: pode ter.
Ah, e dizer que isto vai acabar, que por si mesmo não pode durar. Não, ela não está se referindo ao fogo, refere-se ao que sente. O que sente nunca dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. Encarniça-se então sobre o momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja. Então, ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre do homem, e ao prendê-la nas suas, ela doce arde, arde, flameja."

Clarice Lispector, no livro: Melhores Contos

2 comentários:

Anônimo disse...

podíamos saber um pouco mais da morte.

mas não seria isso que nos faria

ter vontade de morrer mais

depressa.

podíamos saber um pouco mais

da vida.

talvez não precisássemos de viver

tanto, quando o que é preciso é

saber que temos de viver.

podíamos saber um pouco mais

do amor.

mas não seria isso que nos faria

deixar de amar ao saber

exactamente o que é o amor,

ou amar mais ainda ao descobrir

que, mesmo assim, nada sabemos do

amor.

de Nuno Júdice, poeta e ensaísta. Mexilhoeira Grande, Portugal.

bj

Jú Pacheco disse...
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