domingo, 20 de julho de 2008

Saindo da Matrix

Ca estamos entre um dia e outro. Como havia dito em tempos atras, nao irei me ater mais naquilo que me faz mal. Apesar da necessidade de desabafo e da vontade de direcionar comentarios bastante fervorosos sobre o que me faz mal, tento manter a linha e apontar para o que me da forcas.
Uso entao a lembranca de um filme de 1993 que assisti umas 3 vezes: O Feitico do Tempo. Direcao de Harold Ramis e estrelado por Bill Murray. Conta a historia de um jornalista que apresenta a previsao do tempo e eh obrigado a cada ano visitar uma pequena cidade que odeia para cobrir um festa local sobre a chegada do inverno. La, o tempo se repete, e o camarada ai fica preso no mesmo dia sem nenhuma possibilidade de variacao. Muitas pessoas conhecem esse filme e um bocado de gente ja falou dele. Pois bem, a vida no Japao nao eh mera coincidencia com isso. A realidade dos imigrantes as vezes parece estagnada e lutar contra isso eh estar diante de um importante desafio. Numa mistura de repeticao e tedio, a rotina eh desesperadora. Esta certo que nao importa o lugar onde se vive, podemos estar sujeitos a isso em qualquer lugar do mundo, assim nao quero responsabilizar a vida aqui por isso. Muito mais uma atitude mental que uma interferencia externa. Mas cuidado com isso, afinal o "sistema" (sim, Ele mesmo!) quer sempre responsabilizar o individual pelos problemas que enfrentamos...
Trabalhar no Japao eh mais que enfrentar a repeticao, eh oferecer as vezes sangue, suor e lagrimas. Ofertar a alma em troca de uma suposta seguranca material. Um engodo que te consome e se nao tomar cuidado, te aprisiona do modo mais sutil possivel: pelo espirito. Um lugar que te cansa, te forca a esquecer, a nao lembrar, a abandonar o que te parece ser tao precioso. Com o tempo voce vai deixando tudo "pra depois". Quando se da conta, ficaram distantes os pequenos prazeres, os sabores grandes, a inteligencia e alegria grande. Vai se dando conta que o melhor momento do dia eh a hora de sair do trampo - contraditoriamente o lugar onde se passa mais tempo do dia.
Bom, o que interessa nisso tudo, assim como no filme que falei, eh que apesar de tudo, sao atos de solidariedade que fazem diferenca. Historias que escapam da repticao da maquina. A generosidade desinteressada que te faz sorrir sem esperar por isso. Estou indo para 3 semanas de trabalho ininterruptas e pude ver isso. Veja o caso. Um transporte eh oferecido para ir ate o trabalho e normalmente leva 50 minutos de minha casa ate la. O ponto de entrada deve ser batido 10 minutos antes, e caso voce atrase um minuto eh descontada meia hora de sua primeira hora de trabalho. O motorista do carro que me leva tambem eh funcionario la. Um dia desses ele perdeu a hora e se atrasou e chegamos literalmente um minuto atrasados. Eramos umas 7 pessoas. Todos iriam perder parte dessa hora por conta disso. Eis que no dia seguinte, o colega e motorista aparece no refeitorio e oferece em dinheiro para cada um a meia hora perdida por conta do atraso no dia anterior! Desculpou-se com cada um e lamentou o atraso e disse que tentaria fazer com que isso nao se repetisse. Nenhum de nos aceitou esse dinheiro. Como poderiamos?
Outro dia foi diferente. Parte do trabalho eh feito numa maquina de solda com 18 marcadores, pontos que aquecem o metal e grudam uma parte na outra. Duas pessoas devem estar em cada ponta para colocar o material na maquina e ver se ela faz isso corretamente, nivelando as duas partes. As vezes uma parte ou outra passa direto e nao solda corretamente, tendo que ser repetido o processo. Como cada lote eh devidamente marcado, pode se identificar quem e quando o erro aconteceu. E quem errou deve consertar o lote em questao. Dias atras, um dos malucos la erro um lonte inteiro com umas 400 pecas, trabalho de ate 2 horas. Ele nivelou a maquina errada. Perderia a hora inteira do almoco e teria que fazer um "extra" sem ganhar nada. Isso na teoria, porque a pratica foi outra. O rapaz em questao ficou desconsolado com isso. Quase sem tempo pra familia, teria ainda que refazer aquilo tudo. Quase! Juntamos mais umas 4 pessoas e terminamos o trabalho em meia hora. Perdemos meia hora de nosso almoco, mas a felicidade com que ele ficou depois, por poder voltar pra casa e ter um tempo para comer algo valeu o esforco.
O recado eh simples. Apesar de nao ser um grande entendedor e nao corroborar muito com o tio Karl Marx, ele tinha toda razao sobre ideias de luta de classes e alienacao do trabalho. Cada vez que os trabalhadores brigam e se perdem em dispustas, fofocas e demais bobagens, quem administra o complexo de controle na sociedade hoje apenas se fortalece. Sei que as vezes me torno repetitivo com alguns assuntos e ideias, mas eh porque me parece necessario. Dignidade, saber o que eh importante abrir mao, paciencia, resistencia sao lugares fundamentais para buscar ter sempre em minha vida. Nao quero esquecer isso, porque ja cometi erros tristes exatamente por me afastar de algumas dessas coisas.
Entao eh isso. Para que possam ter uma ideia melhor dessa repeticao, dilemas e luta vivida por quase todos os brasileiros aqui no Japao, sugiro que vejam o curta Dekassegui de Roberto Maxwell. Imagens, sons e movimentos de uma vida que tenta ser melhor.

2 comentários:

Anônimo disse...

Alessandro, querido, pena que você não possa escrever mais, essas lufadas de humanidade no espírito da gente. Te escreverei com calma, agora estou naquele momento em que o trabalho afasta as coisas boas "pra depois". Não é um trabalho extenuante como o seu, mas garante minha sobrevivência e tem prazos a cumprir, então... mas queria ainda, agradecer pelo belo texto sobre o Tambor e pela força na divulgação. Sei que a rotina da fábrica não te consumirá, mas não deixe as máquinas te machucarem.

beijo, saudades, cidinha.

Jú Pacheco disse...

Eu e as músicas!
rs...

Olha que bonitinha! Do Itamar!!

Aprendi que tudo passa, tomando chá ou cachaça
Tomando champanhe ou não
Aprendi que a descrença, a desconfiança e a doença
São partes da maldição
Aprendi que a ignorância, a sordidez e a ganância
São lavas desse vulcão
Aprendi que essa fumaça a minha janela embaça
Por fora, por dentro, não
Aprendi tetra depressa que a taça do mundo é nossa
E que São Paulo é meu sertão