Novamente esta aqui na íntegra a entrevista sobre alguns aspectos da vida no Japão concedida para a Agência de Notícias Anarquistas.
Mais abraços.
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Leia a seguir, a segunda parte da entrevista com o anarquista Alessandro Campos, que atualmente vive na cidade de Ogaki, no Japão. Desta vez ele nos conta um pouco, entre outros assuntos, do racismo e da discriminação sofridas pelas minorias que vivem no Japão.
ANA > Já percebeu alguma movimentação anárquica nessa cidade onde mora, Ogaki?
Alessandro < Não, aqui nada ainda. Mas em Nagoya, perto daqui tem um bar que rola muitos sons bons. O Huck Finn sempre tem uns shows punks e umas barulheiras do tipo... Bem legal! (risos) O Mukeka de Rato veio tocar nesse lugar há uns dois meses atrás. Tem uma banda punk formada só de brasileiros que toca por aí também. Chama Nomares e um dos caras da banda, o Rafael, tem um selo - www.karasukiller.com - e tá sempre organizando eventos nessa região. A coisa é bem faça você mesmo. Eles são uma mistura de samurais punks com maloqueiros bons de briga de qualquer grande cidade brasileira! O que esperar de uns caras que tocam cover do Olho Seco para os japas se matarem? São ótimos! Mosh!
ANA > Nem de grupos da esquerda tradicional?
Alessandro < Isso sim. Não exatamente na cidade, mas na província (é como se fosse um estado no Brasil). Existe um sindicato que tenta trabalhar com as comunidades de imigrantes aqui. Recentemente houve um caso de um brasileiro que foi demitido por chamar o chefe de idiota (bakkayaro) em uma discussão. A empresa alegava que isso era um insulto imperdoável e tentou demiti-lo por justa causa. O sindicato entrou com um processo dizendo que os direitos desse trabalhador não poderiam ser desrespeitados por algo tão pequeno como isso. O processo durou mais de um ano e o funcionário ganhou a causa e isso se deu pela atuação direta do sindicato. Acho que a empresa esperava que ele cometesse harakiri (morrer com um corte na própria barriga) ou ainda cortar o dedinho como prova de arrependimento por insultar o superior... (risos) Isso é o que acontece quando as pessoas assistem muitos filmes sobre a máfia japonesa yakuza.
ANA > E em Tóquio?
Alessandro < Em Tóquio sim. Sei que há uma livraria anarquista e um espaço que é uma espécie de café que rolam shows e debates. Eu infelizmente ainda não pude ir porque realmente fica muito longe e caro. Tenho a impressão que há coisas mais organizadas em Tóquio e em outros grandes centros como Kyoto e Osaka. São lugares que tiveram uma presença maior de anarquistas, principalmente em sindicatos. No restante do país são mais indivíduos ou grupos de estudos em universidades. Tenho um amigo em Nagoya que fez a tradução dos livros da Soma do Roberto Freire para o japonês. São coisas assim que aparecem mais.
ANA > Esses livros foram traduzidos e editados? Como ele descobriu a Soma, uma terapia anarquista?
Alessandro < Isso realmente foi engraçado. Eu conheci o Ota há uns dois anos atrás em São Paulo, quando ele foi numa roda de capoeira do meu grupo Angoleiro Sim Sinhô na Barra Funda. Ele estava por São Paulo conhecendo exatamente o Roberto Freire. Mas nesse tempo a gente nem se falou muito. Ele é bem japonês do tipo caladão... (risos)
Quando eu cheguei aqui no Japão fui para uma roda do grupo que ele faz parte, e foi aí que fiquei sabendo melhor como tudo começou. Ele é capoeirista e faz um tempo que se interessa por psicologia reichiana também. A anarquia apareceu para ele nesse momento que conheceu a Soma. Quando ele estava em Londres viu um livro da Soma em inglês e não parou de ler. E foi então que resolveu fazer a tradução. Ele traduziu do inglês há mais ou menos um ano. O livro ainda não saiu, está disponibilizado apenas on-line porque pelo que sei ainda não conseguiu grana para publicar.
ANA > Uns anos atrás eu li um artigo de um anarquista japonês que dizia que a sociedade japonesa é extremamente racista e xenófoba, em relação aos trabalhadores imigrantes iranianos, chineses, filipinos, malasianos, brasileiros e outros povos. É assim mesmo? Já percebeu algo nessa sua estadia por aí?
Alessandro < Isso é um ponto bastante delicado. Eu concordo plenamente com isso. Mas não devemos esquecer que o Japão vem de um histórico com longo período de isolamento do restante do mundo, que foram esses 3 séculos governados pelo Xogun. Eles possuem um aspecto mais reservado se comparados com o ocidente ou mesmo com outros povos da Ásia, e isso às vezes nos parece um tipo de discriminação. Diria que há um tipo de desconfiança com o diferente, com o outro de fora. Guardadas as proporções das diferenças culturais podemos falar desse racismo e dessa xenofobia. O fato é que esse isolamento e essas diferenças não podem ser aceitas com normalidade para o preconceito.
Penso que parte desse problema vem diretamente ligado ao nacionalismo japonês. Até o final da segunda guerra a figura do imperador era a de uma divindade. Idéias clássicas de todo nacionalismo como superioridade racial, cultural e dominação estão ainda presentes aqui, apesar dos jovens não se importarem tanto com a família real e isso estar diminuindo. Às vezes a xenofobia é uma maneira de encontrar um bode expiatório para os próprios limites e problemas e não assumir a responsabilidade. Mas como em todo lugar, existem pessoas boas e outras não tão boas.
Acho que os fatos podem falar por si. Recentemente um casal de brasileiros (ambos descendentes de japoneses, acho que netos) decidiram comprar um imóvel e viver definitivamente no Japão. Buscaram por um terreno e fizeram a planta da casa que queriam construir. As negociações com a
imobiliária começaram e um tempo depois, sem nenhuma razão clara, ficaram tumultuadas e o negócio não se concretizava. Depois de mais de um mês, desconfiados, pressionaram a imobiliária para saber se havia algum problema. Foi então que descobriram que a associação de moradores quando soube que iriam morar "estrangeiros" (gaijins) na vizinhança, formaram uma comissão e exigiram que a imobiliária não realizasse a negociação. A imobiliária temendo ser mal vista no bairro estava tentando usar outros meios para fazer com que esse casal desistisse do negócio. Em outra cidade próxima daqui, haviam estabelecimentos comerciais, tipo restaurante e bar, que colocaram placas em português e espanhol informando que não atendem esse "tipo" de público. Existem casos de vídeo-locadoras que não fazem cadastro de estrangeiros e
acho que quase todo mundo que conheci que está há algum tempo aqui tem alguma história pra contar de discriminação. Às vezes parece um novo tipo de apartheid e não sei dizer quanto tempo poderia continuar existindo. Pra compensar a falta de anarquistas, ironicamente por toda parte você encontra uns grupos fascistas. Você pode ver eles nas ruas, em uns ônibus todos pretos com a bandeira do Japão imperial pintada e com alto falante tocando música nacionalista e convocando a população para o resgate das tradições nipônicas e pela expulsão dos imigrantes e do estilo de vida ocidental. Como eu não falo japonês direito não consigo saber exatamente como é esse discurso, mas amigos que falam japonês me dizem que é o velho lixo nacionalista xenofóbico de sempre.
Recentemente houveram eleições municipais e essa foi a bandeira de muitos candidatos: apontar os imigrantes como responsáveis pelos problemas do Japão, particularmente de toda criminalidade. E aí nesse caso é mais duro ainda porque além de ser considerado um criminoso, é um não japonês, e as prisões aqui possuem um grande histórico de violação de direitos humanos.
ANA > E que tipo de criminalidade são mais comuns em Ogaki, ou no Japão como um todo?
Alessandro < Geralmente roubo de carros, casas e lojas. Tráfico de drogas também. Um pouco raro crimes com armas de fogo, provavelmente pela dificuldade em consegui-las por aqui, legalmente é quase impossível. E muitos crimes passionais.
ANA > Com crimes passionais quer dizer machismo em último grau? Homens matando mulheres? O Japão tem uma tradição machista muito forte, não?
Alessandro < Geralmente homens matando mulheres. Eu sempre fico pensando nas diferenças culturais e em como experiências multiculturais podem ser enriquecedoras para ajudar a melhorar os desafios do mundo hoje.
Pensando por uma perspectiva mais coletiva, de um imaginário social compartilhado, sempre podemos ensinar e aprender alguma coisa. Podemos aprender com os japoneses, por exemplo, um pouco mais sobre o respeito aos ciclistas e a preservação de sua história. Mas sem dúvida eles precisam aprender muito a respeito de gênero. Uma tradição muito sexista ainda vive aqui.
Homens e mulheres podem trabalhar juntos fazendo a mesma coisa, o salário das mulheres é de 20% a 40% inferior, e isso é publico e aceito quase sem nenhum questionamento. O assédio às mulheres também é grande, tanto no trabalho pelos chefes como dentro de trens e ônibus. O metrô de Tokyo possui vagões somente para mulheres, já que é grande a quantidade de mulheres bolinadas. O mais maluco é que em muitos casos existem mulheres que não conseguem reagir, já que a boa educação ensina que uma boa mulher nunca deve chamar atenção ou reclamar. Isso acaba tendo efeitos bem ruins porque mulheres sofrem esse tipo de assédio e não se sentem no direito de reclamar, agem como se fosse natural. As diferentes relações aluna-professor às vezes apresenta isso. A aluna não consegue rejeitar as investidas do "sensei", a relação hierárquica pesa. Você também ainda encontra casais nas ruas, geralmente pessoas idosas, em que a mulher deve andar uns 2 passos atrás do homem. Outra situação em grande escala é o fato dos japoneses também serem os maiores consumidores de pornografia do mundo (não que eu tenha algo contra a pornografia em si e isso seria um assunto pra outra hora...), mas aqui inclui grandes quantidades de material de pedofilia. Não há nenhum impedimento legal no Japão para divulgação desse tipo de material, eles são bem coniventes com a pedofilia e muitos estadunidenses e europeus chegam constantemente ao Japão com intenção de negociar esse tipo de material. São coisas significativas na cultura japonesa e podem mostrar um pouco porque ainda há tantos crimes passionais. O que é bom é que a juventude vem demonstrando um outro comportamento que não compactua mais tanto com isso.
ANA > E no Japão há prisões privadas como nos Estados Unidos?
Alessandro < Recentemente foi inaugurado o primeiro presídio privado, todos os outros são do Estado.
ANA > Com esse grau alto de violações dos direitos humanos nas prisões japonesas, é trivial acontecerem rebeliões nos presídios?
Alessandro < São raras, muito raras. Mesmo tendo atualmente uma super lotação do complexo prisional com mais de 70.000 mil presos, enquanto se fala que o máximo seria de 60.000. Acontece que as prisões são pequenas e de um modo geral os presos não passam tanto tempo juntos para talvez pensar e organizar uma rebelião. O controle é muito rígido. Quando um preso quer falar algo com alguém que não seja companheiro de cela, ele precisa ficar em pé diante da porta em posição de "sentido", dizer que o prisioneiro tal (no caso ele!) deseja falar. O código de conduta dos prisioneiros é o mesmo desde 1908. É comum usarem como tratamento para quem desrespeita-lo, colocar a pessoa em uma camisa de força e deixá-la por horas ajoelhado no chão da cela. Aqui também ainda existe pena de morte.
ANA > E que violações são mais comuns nas prisões?
Alessandro < Além das punições que descrevi com o uso de camisa de força, ocorre privação de visitas e torturas físicas e principalmente psicológicas.
ANA > O nível de controle do Estado japonês deve ser muito maior que no Brasil, extremamente sofisticado, não?
Alessandro < O Estado ainda está muito identificado com aspecto da cultura de um modo geral. O regime dos xoguns deixou marcas profundas na coletividade japonesa. As inúmeras guerras em que o Japão se envolveu, principalmente no final do século XIX e no XX tinham mais do que apenas um desejo imperialista. Na prática faz pouco tempo que os japoneses se deparam sem poder ignorar o restante do mundo. Os imigrantes estão chegando de maneira significativa nos últimos 40 anos. Acho que o discurso e a prática ainda são bem conservadores e a alienação da população de um modo geral é bem utilizada pelo Estado. Apesar de que a cada ano os casos de corrupção aumentarem, a população segue bastante apática. Falar que alguém é um ladrão no Japão é algo muito duro não apenas para quem é acusado, mas para quem está falando também. O Estado usa a cultura para sua atuação, não apenas a velha tradição do pão e circo, mas a hierarquia e a posição social para manipular, coisas significativas para os japoneses. Para você ter uma idéia melhor, quando a segunda grande guerra acabou um dos pontos do tratado de rendição que o governo teve que assinar era o reconhecimento de que o imperador não era um Kami (Deus), mas um homem comum. Até hoje tem gente que não acredita nisso e pensa nos aspectos divinos de seus governantes. No Brasil foram publicados dois livros muito interessantes que podem ajudar a entender essa herança. "Corações Sujos" do Fernando Morais e "Gen, pés descalços" de Keiji Nakazawa. O primeiro sobre uns malucos de uma seita no Brasil chamada Shindo Renmei que disse que a derrota do Japão era contra-propaganda e aterrorizou a comunidade nipo-brasileira do interior de São Paulo. O segundo um relato autobiográfico em quadrinho incrível de um sobrevivente da bomba atômica em Hiroshima.
Vozes dissidentes sempre existiram, mesmo no tempo dos samurais houveram revoltas camponesas e ainda na primeira metade do século XX foi grande a influência do pensamento anarquista na luta dos trabalhadores. Mas como quase sempre acontece, a história é contada do ponto de vista dos vencedores, diga-se opressores.
ANA > É verdade que há muitos moradores de rua no Japão?
Alessandro < Sim, realmente há uma grande quantidade se levarmos em conta o espaço físico do território japonês e o número de habitantes. O governo fala algo em torno de 26.000 pessoas, mas como sabemos que todos os governos falam por números baixos, existem dados não oficiais que revelam aproximadamente 45.000 pessoas. Acontece que os japoneses tentam de muitos modos tapar o sol com a peneira e não reconhecem esse tipo de problema. Andando por grandes cidades, por exemplo, Tóquio, você encontra muitas pessoas vivendo em quase todos os grande parques da cidade. Elas vão parar nas ruas por diferentes motivos, mas o mais comum é a perda do emprego. Geralmente montam uma espécie de acampamento com lonas azuis e ficam próximos uns aos outros. Nesse site tem umas fotos: www.japanwindow.com/gallery/homeless/index.html
ANA > Esses moradores são oriundos do Japão mesmo ou imigrantes?
Alessandro < A maioria são japonês, mas você pode encontrar alguns chineses, filipinos e alguns pouquíssimos brasileiros. No caso dos imigrantes é um pouco mais difícil encontrá-los ou saber os motivos que levaram essa pessoa a se tornar morador de rua, porque existe o que chamaria de orgulho ferido. A pessoa vem pra cá com o sonho de ficar rica e acaba parando na rua, isso é complicado em contar para as pessoas que ficaram no seu país de origem.
ANA > Retomando o assunto racismo e xenofobia, você já sofreu algum tipo de discriminação racial?
Alessandro < Sem dúvida a pior experiência foi em um posto da imigração. O responsável era nitidamente um racista e não foi muito "legal" não apenas comigo, mas também com alguns filipinos e peruanos que estavam lá. Acho que quando não entendemos perfeitamente um idioma às vezes tendemos a confundir má educação e grosseria com discriminação. Houve uma situação em que pensei que estava sendo vítima de racismo em uma loja, mas depois vim a descobrir que na verdade a pessoa era bastante desagradável, inclusive com japoneses. Devemos estar atentos com isso para não fazer falsos julgamentos.
ANA > Uma pequena curiosidade, na cidade onde mora há terremotos? (risos)
Alessandro < O tempo todo! É uma sensação bem estranha, você não sabe o que fazer. Na verdade não há muito o que fazer, tudo tremendo e balançando... A sorte é que aqui eles costumam ser fracos, mas tem alguns lugares que a coisa é feia. E no litoral tem tsunami direto também. Além dos furacões. Ou seja, se o mundo for acabar mesmo, vai acabar aqui primeiro e vocês aí no Brasil vão ter metade de um dia pra aproveitar... (risos)
ANA > No começo da entrevista você disse que vive na cidade onde um dos grandes mestres do Haicai, Bashô, passou seus últimos dias. E como sou amante desses “poeminhas”, não poderia deixar de te perguntar: essa arte continua muito viva no Japão?
Alessandro < Pelo pouco que vi está sim. Uma das coisas muito agradáveis do Japão é que há respeito a suas artes, muitas delas estão bem preservadas. A preocupação estética está latente. Claro que isso não significa que todo japonês pode falar sobre e fazer essas coisas. Seria como pensar que todo brasileiro sabe sambar, gosta de feijoada e joga futebol... (risos)
A caligrafia, os desenhos, a música, a culinária, a literatura, as diversas cerimônias, o uso do kimono, são algumas das coisas que você pode aprender, no sentido que são acessíveis. Às vezes você precisa ir para uma escola especializada e dependendo da região uma ou outra coisa é mais viável, já que cada região acabou desenvolvendo um tipo de arte.
Aqui em Ogaki a figura de Bashô é bem conhecida. Existe um monumento em sua homenagem próximo a um dos rios que cortam a cidade. Uma estátua de tamanho natural com alguns haicais seus é bastante visitada e no museu da cidade também há artigos originais de seu tempo.
ANA > Você tem algum projeto em andamento no Japão? Musical, político...
Alessandro < Atualmente estou dando aulas de capoeira angola. Isso tem me ocupado bastante. Penso que para além da musicalidade e do exercício físico, a capoeira hoje pode ser um importante elemento cultural, que consideradas as devidas proporções, pode fazer pelas pessoas hoje o que fez pelos negros no Brasil e sua resistência contra a escravidão. A capoeira angola é uma legítima expressão da potencialidade de reivindicação e liberdade das pessoas que lutam contra todas as formas de escravidão. A capoeira angola é contra a opressão seja qual for e é, sim, a favor da vida e da liberdade. Fazer com que brasileiros possam alimentar e reconhecer suas raízes para poder lidar melhor com essa realidade bastante dura existente aqui, assim como compartilhar com os japoneses uma outra maneira de experimentar o mundo, é algo bastante importante pra mim, e com o pouco que sei tento ser útil de algum modo. Tenho tocado berimbau com um grupo de músicos japoneses, mas é algo bem amador e não sei o que vai acontecer. Também tenho estudado taiko (tambores japoneses) e está sendo uma boa experiência.
Apesar de considerar isso uma ação bastante política, no que diz respeito a outras formas de um ato estritamente político e também com a psicologia, ainda está tudo bem devagar. A idéia para curto prazo é poder realizar alguns grupos de apoio psicológico para brasileiros e outros para discutir questões pertinentes a identidade e atuação política dessa comunidade nas terras japonesas. Apesar de existirem mais de 300 mil brasileiros no Japão, iniciativas como essas são muito poucas e quase sempre institucionais (muitas ligadas as igrejas, ong´s bastante preocupadas em receber dinheiro do governo, ou mesmo do Estado em algum nível). O que poderíamos chamar de comunidade não possui quase expressividade para reivindicar o que quer que seja, e a mentalidade de gado que o povo brasileiro tem aí, parece se estender para a sua nova estadia em outro país. Não podemos parar, certo?
ANA > Para finalizar, você se lembra de alguma gafe sua cometida no Japão? Poderia nos contar? (risos)
Alessandro < Quando eu cheguei ficava o tempo todo andando de bicicleta na contramão e levei um bom tempo pra me acostumar com o sentido contrário das ruas. O sentido aqui é ir pela esquerda e voltar pela direita, como na Inglaterra. Muita gente me xingava e eu achava que estavam me cumprimentando...
Outra vez fui em um bar e quando ia embora eu pedi uma lata de cerveja pra ir bebendo no caminho. O pessoal do lugar não entendeu o que eu estava querendo e eu achava que eles não tinham compreendido meu pedido, o que estava falando, e foi aí que descobri que os japoneses nunca fazem isso quando vão embora de um bar. Comecei a conversar com o dono do lugar que gostava muito de música brasileira e ficamos falando sobre as diferenças que existem no samba e tal, falei da cerveja também. No final ele me deu duas latinhas por conta da casa... (risos)
ANA > As últimas palavras são suas... Valeu!
Alessandro < Obrigado pela oportunidade de pensar comigo sobre essas coisas todas. Refletir o mundo além dos limites de nossos olhos e experiências imediatas é dar uma oportunidade para superar preconceitos e limites. Já passou da hora de nossos esforços serem apenas para fazer a nossa parte. Sem dúvida essa idéia é importante, mas talvez não tenhamos tempo suficiente para conseguir os resultados que desejamos.
Há de se engajar mais em lutas que apoiamos. Também pensar no que podemos abrir mão ou não. Todo mundo quer mais isso ou aquilo, quer mais grana, tempo, outras relações etc, mas pouca gente está disposta a abrir mão de algo seu.
Há de se escolher entre a liberdade e a segurança, entre a paz e o progresso. Acredito que a anarquia ajuda a pensar mais na liberdade e na paz. A anarquia antes de mais nada, pra mim é uma maneira de trabalhar para me fazer alguém melhor, uma força contínua para não aceitar injustiças, para não negociar minha ética com os opressores, mas para colaborar com minha comunidade e meu mundo, uma tolerância melhor dos outros e das minhas contradições e defeitos, buscando por sincero amor e esperança. O Japão é uma terra bonita e seu povo tem desafios como toda a humanidade. Na essência não são melhores e nem piores. Devem abandonar a idéia de nacionalismo que os prejudica tanto e caminhar para uma só humanidade, que de fato somos.
Eu estou começando um blog e a idéia é falar sobre as muitas coisas do Japão e do Brasil. Tá convidado a olhar: www.paladardepalavra.blogspot.com
Boa sorte com a ANA. Saúde!
agência de notícias anarquistas-ana
ANA > Já percebeu alguma movimentação anárquica nessa cidade onde mora, Ogaki?
Alessandro < Não, aqui nada ainda. Mas em Nagoya, perto daqui tem um bar que rola muitos sons bons. O Huck Finn sempre tem uns shows punks e umas barulheiras do tipo... Bem legal! (risos) O Mukeka de Rato veio tocar nesse lugar há uns dois meses atrás. Tem uma banda punk formada só de brasileiros que toca por aí também. Chama Nomares e um dos caras da banda, o Rafael, tem um selo - www.karasukiller.com - e tá sempre organizando eventos nessa região. A coisa é bem faça você mesmo. Eles são uma mistura de samurais punks com maloqueiros bons de briga de qualquer grande cidade brasileira! O que esperar de uns caras que tocam cover do Olho Seco para os japas se matarem? São ótimos! Mosh!
ANA > Nem de grupos da esquerda tradicional?
Alessandro < Isso sim. Não exatamente na cidade, mas na província (é como se fosse um estado no Brasil). Existe um sindicato que tenta trabalhar com as comunidades de imigrantes aqui. Recentemente houve um caso de um brasileiro que foi demitido por chamar o chefe de idiota (bakkayaro) em uma discussão. A empresa alegava que isso era um insulto imperdoável e tentou demiti-lo por justa causa. O sindicato entrou com um processo dizendo que os direitos desse trabalhador não poderiam ser desrespeitados por algo tão pequeno como isso. O processo durou mais de um ano e o funcionário ganhou a causa e isso se deu pela atuação direta do sindicato. Acho que a empresa esperava que ele cometesse harakiri (morrer com um corte na própria barriga) ou ainda cortar o dedinho como prova de arrependimento por insultar o superior... (risos) Isso é o que acontece quando as pessoas assistem muitos filmes sobre a máfia japonesa yakuza.
ANA > E em Tóquio?
Alessandro < Em Tóquio sim. Sei que há uma livraria anarquista e um espaço que é uma espécie de café que rolam shows e debates. Eu infelizmente ainda não pude ir porque realmente fica muito longe e caro. Tenho a impressão que há coisas mais organizadas em Tóquio e em outros grandes centros como Kyoto e Osaka. São lugares que tiveram uma presença maior de anarquistas, principalmente em sindicatos. No restante do país são mais indivíduos ou grupos de estudos em universidades. Tenho um amigo em Nagoya que fez a tradução dos livros da Soma do Roberto Freire para o japonês. São coisas assim que aparecem mais.
ANA > Esses livros foram traduzidos e editados? Como ele descobriu a Soma, uma terapia anarquista?
Alessandro < Isso realmente foi engraçado. Eu conheci o Ota há uns dois anos atrás em São Paulo, quando ele foi numa roda de capoeira do meu grupo Angoleiro Sim Sinhô na Barra Funda. Ele estava por São Paulo conhecendo exatamente o Roberto Freire. Mas nesse tempo a gente nem se falou muito. Ele é bem japonês do tipo caladão... (risos)
Quando eu cheguei aqui no Japão fui para uma roda do grupo que ele faz parte, e foi aí que fiquei sabendo melhor como tudo começou. Ele é capoeirista e faz um tempo que se interessa por psicologia reichiana também. A anarquia apareceu para ele nesse momento que conheceu a Soma. Quando ele estava em Londres viu um livro da Soma em inglês e não parou de ler. E foi então que resolveu fazer a tradução. Ele traduziu do inglês há mais ou menos um ano. O livro ainda não saiu, está disponibilizado apenas on-line porque pelo que sei ainda não conseguiu grana para publicar.
ANA > Uns anos atrás eu li um artigo de um anarquista japonês que dizia que a sociedade japonesa é extremamente racista e xenófoba, em relação aos trabalhadores imigrantes iranianos, chineses, filipinos, malasianos, brasileiros e outros povos. É assim mesmo? Já percebeu algo nessa sua estadia por aí?
Alessandro < Isso é um ponto bastante delicado. Eu concordo plenamente com isso. Mas não devemos esquecer que o Japão vem de um histórico com longo período de isolamento do restante do mundo, que foram esses 3 séculos governados pelo Xogun. Eles possuem um aspecto mais reservado se comparados com o ocidente ou mesmo com outros povos da Ásia, e isso às vezes nos parece um tipo de discriminação. Diria que há um tipo de desconfiança com o diferente, com o outro de fora. Guardadas as proporções das diferenças culturais podemos falar desse racismo e dessa xenofobia. O fato é que esse isolamento e essas diferenças não podem ser aceitas com normalidade para o preconceito.
Penso que parte desse problema vem diretamente ligado ao nacionalismo japonês. Até o final da segunda guerra a figura do imperador era a de uma divindade. Idéias clássicas de todo nacionalismo como superioridade racial, cultural e dominação estão ainda presentes aqui, apesar dos jovens não se importarem tanto com a família real e isso estar diminuindo. Às vezes a xenofobia é uma maneira de encontrar um bode expiatório para os próprios limites e problemas e não assumir a responsabilidade. Mas como em todo lugar, existem pessoas boas e outras não tão boas.
Acho que os fatos podem falar por si. Recentemente um casal de brasileiros (ambos descendentes de japoneses, acho que netos) decidiram comprar um imóvel e viver definitivamente no Japão. Buscaram por um terreno e fizeram a planta da casa que queriam construir. As negociações com a
imobiliária começaram e um tempo depois, sem nenhuma razão clara, ficaram tumultuadas e o negócio não se concretizava. Depois de mais de um mês, desconfiados, pressionaram a imobiliária para saber se havia algum problema. Foi então que descobriram que a associação de moradores quando soube que iriam morar "estrangeiros" (gaijins) na vizinhança, formaram uma comissão e exigiram que a imobiliária não realizasse a negociação. A imobiliária temendo ser mal vista no bairro estava tentando usar outros meios para fazer com que esse casal desistisse do negócio. Em outra cidade próxima daqui, haviam estabelecimentos comerciais, tipo restaurante e bar, que colocaram placas em português e espanhol informando que não atendem esse "tipo" de público. Existem casos de vídeo-locadoras que não fazem cadastro de estrangeiros e
acho que quase todo mundo que conheci que está há algum tempo aqui tem alguma história pra contar de discriminação. Às vezes parece um novo tipo de apartheid e não sei dizer quanto tempo poderia continuar existindo. Pra compensar a falta de anarquistas, ironicamente por toda parte você encontra uns grupos fascistas. Você pode ver eles nas ruas, em uns ônibus todos pretos com a bandeira do Japão imperial pintada e com alto falante tocando música nacionalista e convocando a população para o resgate das tradições nipônicas e pela expulsão dos imigrantes e do estilo de vida ocidental. Como eu não falo japonês direito não consigo saber exatamente como é esse discurso, mas amigos que falam japonês me dizem que é o velho lixo nacionalista xenofóbico de sempre.
Recentemente houveram eleições municipais e essa foi a bandeira de muitos candidatos: apontar os imigrantes como responsáveis pelos problemas do Japão, particularmente de toda criminalidade. E aí nesse caso é mais duro ainda porque além de ser considerado um criminoso, é um não japonês, e as prisões aqui possuem um grande histórico de violação de direitos humanos.
ANA > E que tipo de criminalidade são mais comuns em Ogaki, ou no Japão como um todo?
Alessandro < Geralmente roubo de carros, casas e lojas. Tráfico de drogas também. Um pouco raro crimes com armas de fogo, provavelmente pela dificuldade em consegui-las por aqui, legalmente é quase impossível. E muitos crimes passionais.
ANA > Com crimes passionais quer dizer machismo em último grau? Homens matando mulheres? O Japão tem uma tradição machista muito forte, não?
Alessandro < Geralmente homens matando mulheres. Eu sempre fico pensando nas diferenças culturais e em como experiências multiculturais podem ser enriquecedoras para ajudar a melhorar os desafios do mundo hoje.
Pensando por uma perspectiva mais coletiva, de um imaginário social compartilhado, sempre podemos ensinar e aprender alguma coisa. Podemos aprender com os japoneses, por exemplo, um pouco mais sobre o respeito aos ciclistas e a preservação de sua história. Mas sem dúvida eles precisam aprender muito a respeito de gênero. Uma tradição muito sexista ainda vive aqui.
Homens e mulheres podem trabalhar juntos fazendo a mesma coisa, o salário das mulheres é de 20% a 40% inferior, e isso é publico e aceito quase sem nenhum questionamento. O assédio às mulheres também é grande, tanto no trabalho pelos chefes como dentro de trens e ônibus. O metrô de Tokyo possui vagões somente para mulheres, já que é grande a quantidade de mulheres bolinadas. O mais maluco é que em muitos casos existem mulheres que não conseguem reagir, já que a boa educação ensina que uma boa mulher nunca deve chamar atenção ou reclamar. Isso acaba tendo efeitos bem ruins porque mulheres sofrem esse tipo de assédio e não se sentem no direito de reclamar, agem como se fosse natural. As diferentes relações aluna-professor às vezes apresenta isso. A aluna não consegue rejeitar as investidas do "sensei", a relação hierárquica pesa. Você também ainda encontra casais nas ruas, geralmente pessoas idosas, em que a mulher deve andar uns 2 passos atrás do homem. Outra situação em grande escala é o fato dos japoneses também serem os maiores consumidores de pornografia do mundo (não que eu tenha algo contra a pornografia em si e isso seria um assunto pra outra hora...), mas aqui inclui grandes quantidades de material de pedofilia. Não há nenhum impedimento legal no Japão para divulgação desse tipo de material, eles são bem coniventes com a pedofilia e muitos estadunidenses e europeus chegam constantemente ao Japão com intenção de negociar esse tipo de material. São coisas significativas na cultura japonesa e podem mostrar um pouco porque ainda há tantos crimes passionais. O que é bom é que a juventude vem demonstrando um outro comportamento que não compactua mais tanto com isso.
ANA > E no Japão há prisões privadas como nos Estados Unidos?
Alessandro < Recentemente foi inaugurado o primeiro presídio privado, todos os outros são do Estado.
ANA > Com esse grau alto de violações dos direitos humanos nas prisões japonesas, é trivial acontecerem rebeliões nos presídios?
Alessandro < São raras, muito raras. Mesmo tendo atualmente uma super lotação do complexo prisional com mais de 70.000 mil presos, enquanto se fala que o máximo seria de 60.000. Acontece que as prisões são pequenas e de um modo geral os presos não passam tanto tempo juntos para talvez pensar e organizar uma rebelião. O controle é muito rígido. Quando um preso quer falar algo com alguém que não seja companheiro de cela, ele precisa ficar em pé diante da porta em posição de "sentido", dizer que o prisioneiro tal (no caso ele!) deseja falar. O código de conduta dos prisioneiros é o mesmo desde 1908. É comum usarem como tratamento para quem desrespeita-lo, colocar a pessoa em uma camisa de força e deixá-la por horas ajoelhado no chão da cela. Aqui também ainda existe pena de morte.
ANA > E que violações são mais comuns nas prisões?
Alessandro < Além das punições que descrevi com o uso de camisa de força, ocorre privação de visitas e torturas físicas e principalmente psicológicas.
ANA > O nível de controle do Estado japonês deve ser muito maior que no Brasil, extremamente sofisticado, não?
Alessandro < O Estado ainda está muito identificado com aspecto da cultura de um modo geral. O regime dos xoguns deixou marcas profundas na coletividade japonesa. As inúmeras guerras em que o Japão se envolveu, principalmente no final do século XIX e no XX tinham mais do que apenas um desejo imperialista. Na prática faz pouco tempo que os japoneses se deparam sem poder ignorar o restante do mundo. Os imigrantes estão chegando de maneira significativa nos últimos 40 anos. Acho que o discurso e a prática ainda são bem conservadores e a alienação da população de um modo geral é bem utilizada pelo Estado. Apesar de que a cada ano os casos de corrupção aumentarem, a população segue bastante apática. Falar que alguém é um ladrão no Japão é algo muito duro não apenas para quem é acusado, mas para quem está falando também. O Estado usa a cultura para sua atuação, não apenas a velha tradição do pão e circo, mas a hierarquia e a posição social para manipular, coisas significativas para os japoneses. Para você ter uma idéia melhor, quando a segunda grande guerra acabou um dos pontos do tratado de rendição que o governo teve que assinar era o reconhecimento de que o imperador não era um Kami (Deus), mas um homem comum. Até hoje tem gente que não acredita nisso e pensa nos aspectos divinos de seus governantes. No Brasil foram publicados dois livros muito interessantes que podem ajudar a entender essa herança. "Corações Sujos" do Fernando Morais e "Gen, pés descalços" de Keiji Nakazawa. O primeiro sobre uns malucos de uma seita no Brasil chamada Shindo Renmei que disse que a derrota do Japão era contra-propaganda e aterrorizou a comunidade nipo-brasileira do interior de São Paulo. O segundo um relato autobiográfico em quadrinho incrível de um sobrevivente da bomba atômica em Hiroshima.
Vozes dissidentes sempre existiram, mesmo no tempo dos samurais houveram revoltas camponesas e ainda na primeira metade do século XX foi grande a influência do pensamento anarquista na luta dos trabalhadores. Mas como quase sempre acontece, a história é contada do ponto de vista dos vencedores, diga-se opressores.
ANA > É verdade que há muitos moradores de rua no Japão?
Alessandro < Sim, realmente há uma grande quantidade se levarmos em conta o espaço físico do território japonês e o número de habitantes. O governo fala algo em torno de 26.000 pessoas, mas como sabemos que todos os governos falam por números baixos, existem dados não oficiais que revelam aproximadamente 45.000 pessoas. Acontece que os japoneses tentam de muitos modos tapar o sol com a peneira e não reconhecem esse tipo de problema. Andando por grandes cidades, por exemplo, Tóquio, você encontra muitas pessoas vivendo em quase todos os grande parques da cidade. Elas vão parar nas ruas por diferentes motivos, mas o mais comum é a perda do emprego. Geralmente montam uma espécie de acampamento com lonas azuis e ficam próximos uns aos outros. Nesse site tem umas fotos: www.japanwindow.com/gallery/homeless/index.html
ANA > Esses moradores são oriundos do Japão mesmo ou imigrantes?
Alessandro < A maioria são japonês, mas você pode encontrar alguns chineses, filipinos e alguns pouquíssimos brasileiros. No caso dos imigrantes é um pouco mais difícil encontrá-los ou saber os motivos que levaram essa pessoa a se tornar morador de rua, porque existe o que chamaria de orgulho ferido. A pessoa vem pra cá com o sonho de ficar rica e acaba parando na rua, isso é complicado em contar para as pessoas que ficaram no seu país de origem.
ANA > Retomando o assunto racismo e xenofobia, você já sofreu algum tipo de discriminação racial?
Alessandro < Sem dúvida a pior experiência foi em um posto da imigração. O responsável era nitidamente um racista e não foi muito "legal" não apenas comigo, mas também com alguns filipinos e peruanos que estavam lá. Acho que quando não entendemos perfeitamente um idioma às vezes tendemos a confundir má educação e grosseria com discriminação. Houve uma situação em que pensei que estava sendo vítima de racismo em uma loja, mas depois vim a descobrir que na verdade a pessoa era bastante desagradável, inclusive com japoneses. Devemos estar atentos com isso para não fazer falsos julgamentos.
ANA > Uma pequena curiosidade, na cidade onde mora há terremotos? (risos)
Alessandro < O tempo todo! É uma sensação bem estranha, você não sabe o que fazer. Na verdade não há muito o que fazer, tudo tremendo e balançando... A sorte é que aqui eles costumam ser fracos, mas tem alguns lugares que a coisa é feia. E no litoral tem tsunami direto também. Além dos furacões. Ou seja, se o mundo for acabar mesmo, vai acabar aqui primeiro e vocês aí no Brasil vão ter metade de um dia pra aproveitar... (risos)
ANA > No começo da entrevista você disse que vive na cidade onde um dos grandes mestres do Haicai, Bashô, passou seus últimos dias. E como sou amante desses “poeminhas”, não poderia deixar de te perguntar: essa arte continua muito viva no Japão?
Alessandro < Pelo pouco que vi está sim. Uma das coisas muito agradáveis do Japão é que há respeito a suas artes, muitas delas estão bem preservadas. A preocupação estética está latente. Claro que isso não significa que todo japonês pode falar sobre e fazer essas coisas. Seria como pensar que todo brasileiro sabe sambar, gosta de feijoada e joga futebol... (risos)
A caligrafia, os desenhos, a música, a culinária, a literatura, as diversas cerimônias, o uso do kimono, são algumas das coisas que você pode aprender, no sentido que são acessíveis. Às vezes você precisa ir para uma escola especializada e dependendo da região uma ou outra coisa é mais viável, já que cada região acabou desenvolvendo um tipo de arte.
Aqui em Ogaki a figura de Bashô é bem conhecida. Existe um monumento em sua homenagem próximo a um dos rios que cortam a cidade. Uma estátua de tamanho natural com alguns haicais seus é bastante visitada e no museu da cidade também há artigos originais de seu tempo.
ANA > Você tem algum projeto em andamento no Japão? Musical, político...
Alessandro < Atualmente estou dando aulas de capoeira angola. Isso tem me ocupado bastante. Penso que para além da musicalidade e do exercício físico, a capoeira hoje pode ser um importante elemento cultural, que consideradas as devidas proporções, pode fazer pelas pessoas hoje o que fez pelos negros no Brasil e sua resistência contra a escravidão. A capoeira angola é uma legítima expressão da potencialidade de reivindicação e liberdade das pessoas que lutam contra todas as formas de escravidão. A capoeira angola é contra a opressão seja qual for e é, sim, a favor da vida e da liberdade. Fazer com que brasileiros possam alimentar e reconhecer suas raízes para poder lidar melhor com essa realidade bastante dura existente aqui, assim como compartilhar com os japoneses uma outra maneira de experimentar o mundo, é algo bastante importante pra mim, e com o pouco que sei tento ser útil de algum modo. Tenho tocado berimbau com um grupo de músicos japoneses, mas é algo bem amador e não sei o que vai acontecer. Também tenho estudado taiko (tambores japoneses) e está sendo uma boa experiência.
Apesar de considerar isso uma ação bastante política, no que diz respeito a outras formas de um ato estritamente político e também com a psicologia, ainda está tudo bem devagar. A idéia para curto prazo é poder realizar alguns grupos de apoio psicológico para brasileiros e outros para discutir questões pertinentes a identidade e atuação política dessa comunidade nas terras japonesas. Apesar de existirem mais de 300 mil brasileiros no Japão, iniciativas como essas são muito poucas e quase sempre institucionais (muitas ligadas as igrejas, ong´s bastante preocupadas em receber dinheiro do governo, ou mesmo do Estado em algum nível). O que poderíamos chamar de comunidade não possui quase expressividade para reivindicar o que quer que seja, e a mentalidade de gado que o povo brasileiro tem aí, parece se estender para a sua nova estadia em outro país. Não podemos parar, certo?
ANA > Para finalizar, você se lembra de alguma gafe sua cometida no Japão? Poderia nos contar? (risos)
Alessandro < Quando eu cheguei ficava o tempo todo andando de bicicleta na contramão e levei um bom tempo pra me acostumar com o sentido contrário das ruas. O sentido aqui é ir pela esquerda e voltar pela direita, como na Inglaterra. Muita gente me xingava e eu achava que estavam me cumprimentando...
Outra vez fui em um bar e quando ia embora eu pedi uma lata de cerveja pra ir bebendo no caminho. O pessoal do lugar não entendeu o que eu estava querendo e eu achava que eles não tinham compreendido meu pedido, o que estava falando, e foi aí que descobri que os japoneses nunca fazem isso quando vão embora de um bar. Comecei a conversar com o dono do lugar que gostava muito de música brasileira e ficamos falando sobre as diferenças que existem no samba e tal, falei da cerveja também. No final ele me deu duas latinhas por conta da casa... (risos)
ANA > As últimas palavras são suas... Valeu!
Alessandro < Obrigado pela oportunidade de pensar comigo sobre essas coisas todas. Refletir o mundo além dos limites de nossos olhos e experiências imediatas é dar uma oportunidade para superar preconceitos e limites. Já passou da hora de nossos esforços serem apenas para fazer a nossa parte. Sem dúvida essa idéia é importante, mas talvez não tenhamos tempo suficiente para conseguir os resultados que desejamos.
Há de se engajar mais em lutas que apoiamos. Também pensar no que podemos abrir mão ou não. Todo mundo quer mais isso ou aquilo, quer mais grana, tempo, outras relações etc, mas pouca gente está disposta a abrir mão de algo seu.
Há de se escolher entre a liberdade e a segurança, entre a paz e o progresso. Acredito que a anarquia ajuda a pensar mais na liberdade e na paz. A anarquia antes de mais nada, pra mim é uma maneira de trabalhar para me fazer alguém melhor, uma força contínua para não aceitar injustiças, para não negociar minha ética com os opressores, mas para colaborar com minha comunidade e meu mundo, uma tolerância melhor dos outros e das minhas contradições e defeitos, buscando por sincero amor e esperança. O Japão é uma terra bonita e seu povo tem desafios como toda a humanidade. Na essência não são melhores e nem piores. Devem abandonar a idéia de nacionalismo que os prejudica tanto e caminhar para uma só humanidade, que de fato somos.
Eu estou começando um blog e a idéia é falar sobre as muitas coisas do Japão e do Brasil. Tá convidado a olhar: www.paladardepalavra.blogspot.com
Boa sorte com a ANA. Saúde!
agência de notícias anarquistas-ana
No céu azul
parecendo pequenina
a grande gaivota.
Paula Lima Castenheira - 13 anos
Para falar com a ANA: moelpececito@hotmail.com
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