sábado, 25 de dezembro de 2010

o treino para o bom-combate.

Hoje acordei cedo. As 6:30 da manhã sai de casa com minha bicicleta em direção a casa de meus pais na Praia Grande, litoral paulista. Dia nublado. Sabia mais ou menos o que irei ser isso e o que mais me deixava feliz era o tempo que estarei sozinho e em movimento nos quase 90 km que separa minha residência da deles. Há muitos anos descobri que adoro ficar certo tempo sozinho e essas jornadas me ajudam a lidar com isso. Depois de quase 3 horas de pedalada para sair de São Paulo e 15 km de Imigrantes, uns 40 km, precisei mudar de caminho porque o trajeto que havia pensado em fazer estava interditado. A polícia rodoviária não me deixou seguir. Desviei e fui para pista da Anchieta, uma mudança que me fez pedalar mais 10 km e ainda na chuva. A chuva batia de frente e em cada pedalada só tentava estar inteiro naquele momento. Não pensava que estava difícil ou fácil, só estava ali, pedalando e sentindo a água. A rodovia Anchieta é por onde descem os caminhões pro litoral. A pista é estreita, tem 14 km iniciais sem acostamento. Naquelas condições, chovendo e com neblina era quase suicídio! Desci uns 2 km e não encontrava a porra da estrada alternativa! Fiquei preso num "escape"... olhei e via apenas o morro, os caminhões descendo, a mata, a chuva aumentando, e nenhuma estrada! Nada! Pensava que só tinha que ir pra frente, adiante. Até porque voltar não dava, o sentido é único, sem mão dupla. Empurrar na contramão por 2 kms naquele tempo entre caminhões? Nem fodendo! Restava esperar a chuva diminuir ou passar alguém que me levasse até a entrada que estava buscando e não encontrando. E aí aconteceu algo muito inusitado. Como contar isso? Apareceu um cara caminhando no espaço de 30 cm entre a pista e a mureta de contenção! Eu não acreditei naquilo! O homem olhava firme, tinha passos determinados e parecia estar na areia da praia. Ele estava enrolado num saco de lixo e vinha na minha direção, mas não olhava pra mim. Pensei na hora que ou ele era louco ou alguém com alguma proteção muito forte. Gritei e chamei por ele e perguntei se tinha visto alguma estrada por ali. Ele parou e disse que não, nada. Que tinha dormido numa ponte da serra e estava indo pra São Paulo! Sugeriu que eu voltasse porque estava muito perigoso, não dava pra pedalar ali. Falei que agora era só descer e que não irei voltar. Ele falou que eu precisava empurrar a bike e que lá longe talvez tivesse o tal caminho. Fiquei ali pirando no que fazer até que ele disse que tinha encontrado uma corrente ou algo assim e se eu não poderia comprar. Disse que não, mas que tinha um doce. Abri a mochila e dei pra ele, mas fiquei incomodado sem saber porque. Ele me abençoou e voltou pra o “acostamento” de 30 cm. Quando o trafego diminuiu por alguns segundos peguei a bike e desci um pouco mais, uns 500m. Tive que parar. Estava preocupado e realmente seria uma enorme irresponsabilidade entrar ali com a bicicleta. A chuva aumentava. Decidi esperar passar alguém. De repente aquele incomodo de alguns instantes atrás voltou, e forte. Meu Deus porque não dei uma grana praquele cara?! O que aconteceu ali há pouco? Pensei em subir correndo e tentar alcançá-lo, e simplesmente lhe dar 10 ou 20 reais. Ponto. Senti-me um idiota e um egoísta. Aquele cara numa situação tão bizarra quanto a minha, provavelmente num momento muito pior, mas caminhando com tamanha sobriedade que parecia um guerreiro ioruba na busca da trilha de sua caça. E eu ali, buscando um caminho que não tinha a menor idéia onde estava e assustado. Senti-me pequeno e com pouca capacidade de discernimento para atender a generosidade que o mundo às vezes pede. Estava tão preocupado com minha situação que algo simples e que não me custava muito foi totalmente ignorado. Pensei em Exu. Pensei em meu Pai Tempo. Pensei nos caminhos e nas minhas escolhas. Nas minhas duvidas, no meu amor, nas lutas que travei, nos movimentos que apoio, nos arrependimentos que tive. Pensei nos acertos que fiz. Lembrei de você. Do que quero e do que não quero. Das repetições e limitações. No Axé. Na dor que começou naquele frio. No tempo que teria que ficar ali até aparecer alguém. Na morte por atropelamento. Na morte ao cair de alguma ponte. Pensei naquele homem negro que caminhava enrolado no saco de lixo improvisando uma capa de chuva. Pensei e tentei não pensar mais. Queria só ficar ali, sentindo a chuva e pedindo pra conseguir chorar... uns 20 minutos depois passa um carro da concessionária e eu aceno. Eles param e explico a situação. Eles conversam e decidem me dar uma carona. Venho na carroceria até uma estrada e volto a pedalar. Agora meu coração acalma. Não há carros ou caminhões e a ladeira alivia minhas pernas da pedalada. Durante uns 40 minutos eu apenas preciso frear e cuidar pra não cair em algum pedaço escorregadio. Tesão! Estou no parque da serra do mar em direção a Cubatão. Lá no fim da serra, só pra variar, o pneu fura... pausa pra consertar e comer algo. Nossa, tinha esquecido de comer! Levei umas castanhas e um vidro de palmito. Tudo certo, pedal again! Atravesso uma favela e saio no lado errado da pista! Merda, onde estou?! Vou um pouco adiante e pulo o alambrado com a bike. Faltam 25 km. Agora ta tranqüilo, já conheço melhor o caminho. Cheguei e fui direto pra praia, nem subi. Tava imundo e molhado. Tirei parte da roupa e fui só de short até a água. A chuva deu uma trégua e ali, depois de 8 horas, de dentro do mar, fiz minha oração. Silêncio. O ano vem teminando. O bom-combate não.

2 comentários:

Jú Pacheco disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
untitled disse...

Homem, se a morte vier, morra. Mas enquanto houver vida, jogue-se! Nos abismos, nos barrancos, nas corredeiras. Sem economias, sem cinto de segurança e sem controle. Que a providência divina lhe proteja e o seu poderoso instinto lhe guie. Sempre haverá um fluxo. O seu fluxo.
Cheiro!