domingo, 5 de julho de 2009

Nós conheciamos ele.

Fui dar uma volta de bicicleta no centro como em qualquer outro dia. Passei pela Av. Ipiranga diante do cine Marabá e lembrei que ele foi reformado e só por curiosidade fui ver a programação. Entre os hollywood da vida estava lá o filme Jean Charles, de Henrique Goldman. Faltavam 10 minutos para começar e resolvi entrar.

Conheço a história dele. Muita gente conhece e lembra bem do drama que foi esse assassinato. E prefiro contar de algumas lembranças do que simplesmente falar do filme. O filme na verdade nem me pareceu tão bom assim, mas por conta da história ele fica muito sensível e logo no início parei de avaliar sua qualidade e fiquei tomado pelo drama do Jean. Mesmo sabendo o final do filme é uma história legitima, muito honesta e bastante real. Claro que o filme não diz ao pé da letra como ele vivia, mas a vida que Jean levava, ainda é a vida de milhares de brasileiros anônimos em muitos países distantes. Isso faz com que seja u filme importante. As argumentações que são levantadas alí merecem atenção, precisam ser ouvidas, tem que se fazer conhecer.

Estive em Londres entre setembro e dezembro de 2007. Tudo se resumiria numa palavra: foda. Não porque Londres é incrível e fantástica, ela pode ser, claro que pode, mas para muita gente ela é apenas foda, que te fode, que te consome, te detona, te usa, despreza. O modo como as autoridades britânicas lidaram com a morte de Jean comprova isso. Não sou eu ficando puto dizendo isso, mas apenas os fatos revelando o que eles são capazes de fazer. Acho que não preciso me dar ao trabalho de dizer que em todo lugar existem muitas pessoas legais, mas vamos apenas fazer um recorte desses fatos, sem entrar nos detalhes todos que a questão merece. Além do que fazer mea culpa por causa da Inglaterra seria uma piada de muito mal gosto.

A história do Jean, em parte, não é única. Ele como muitas outras pessoas gostaria de mudar, de melhorar e transformar sua vida. Ninguém migra porque acha legal ir comer o pão que o diabo amassou lá no fim do mundo. Ser imigrante normalmente é triste, duro, precisa deixar muita coisa longe e sem nenhuma garantia de que vai funcionar. Mas a história de Jean é também singular porque faz todo mundo sentir que aquilo poderia ter acontecido com qualquer um; e essa sensação é muito angustiante.

Eu já havia experimentado essa sensação. Lembro de Max e Dário nos piquetes em Buenos Aires e quando foram assassinados pela polícia argentina e lembro logo em seguida quando Carlo Giuliani foi assassinado pela policia italiana nas manifestações de Genova em 2001. Lembro de Brad Will quando os paramilitares mexicanos o mataram em Oaxaca em 2006. Todos eram ativistas lutando por aquilo que lhes pertencia. Sempre pensei nesses casos e ficava com a sensação que poderia ter sido eu. A única coisa que nos distinguia era a hora. Eu não estava naquele exato momento em que os mataram, mas poderia estar. Estava algumas horas ou minutos daquele lugar, alguns metros ou alguns kilometros deles, mas que diferença isso faz quando um tiro é disparado contra um amigo, um companheiro de luta?

O trem onde assassinaram Jean precisei pegar várias vezes. As casas ondem moram tantas pessoas eu ajudei a construir e reformar e lá estava um eletricista como ele. A merda daquela placa eu também segurei! Foda, Londres é foda! Talvez não seja tanto, mas pra mim foi. Para o Jean foi. E olha que no filme ele se revela bem animado de viver por lá, mas ainda assim... Eu gostaria que esse filme fosse apenas uma ficção, uma história triste que aconteceu longe, somente na cabeça de alguém, mas não é. Eu conheci esse cara. Não que tenhamos nos tornado grandes amigos, mas conheci todo mundo que estava naquela casa e naquela construção. Trabalhamos juntos. E também com todo mundo que chorava bem baixinho pra ninguém ouvir. Conheci aquele povo que ia pra aula de inglês gratuita no meio do dia nas escolas perto de Oxford St. porque ninguém tinha dinheiro para pagar ou porque precisava economizar. Quantas vezes fomos comer no indiano ou no chinês porque era a comida mais barata? Não que fosse ruim, mas a grana era sempre uma questão, sempre. Eu lembro de algumas coisas que faziamos para tentar melhorar o rendimento e lembro das mancadas que via uns fazerem com os outros achando que ninguém iria saber. Lembro de alguns que achavam incrível ser garçon, lavador de prato, entregador de pizza por lá, mas que não faria isso nem a pau aqui. Lembro de gente falando que o samba era o máximo, mas no Brasil não pararia numa roda de samba no boteco pé sujo de modo algum. Lembro bem daquele inglês escroto que não se dispunha nem a responder quando lhe perguntavam a hora. Lembro perfeitamente daquela cretina no bar olhando a gente como se fossemos menos que nada. Como poderia esquecer aquele outro dia em que o desgraçado do taxista quase atropelou a gente e ainda gritou tentando nos ofender dizendo “seus imigrantes de merda”? Melhor nem começar a falar dos trampos que não pagam nem o mínimo! 3 pounds a hora, dá pra acreditar?! Fazer o que? Ou era isso ou ia pra fila do sopão distribuido em alguns pontos pra galera que vivia nas ruas. Só para vocês saberem, o mínimo quando estavamos lá era de 5,50 pounds a hora. E aquela porra de tempo de outono e inverno? Caralho! Sempre com os pés molhados e a garoa fria na cara, ficando sem luz, sem sol as 3 horas da tarde. Agora eu entendo o humor inglês!

Bom, é por isso que eu quis chorar no filme quando matam o Jean. Aquela arma poderia ter sido disparada contra minha cabeça. Os disparos foram feitos contra alguém que eu conhecia. Sete tiros na cabeça. Mataram alguém que você conhecia! Porra! Merda do caralho! Mataram alguém que estava do meu lado no trem! E os desgraçados foram lá na casa dos pais dele oferecer um cheque para ajudar com as despesas. Forma bizarra de tentar calar a boca de alguém. Foda... Fiquei pensando como meus pais receberiam a notícia se me matassem assim também. Então se você quiser chorar antes, durante ou depois do filme, faça! Mataram alguém que você conhecia. Sua prima também presenciou tudo aquilo.

E essa história não acabou. Tem um monte de gente que conhecemos levando porrada agora mesmo em algum centro de detenção de imigrantes. Hoje mesmo mataram mais alguém porque parecia um terrorista. Fazem poucas horas que os oficiais de imigração separaram mais uma família. Foi hoje mesmo que o racismo e a xenofobia foram praticados sem ninguém ser responsabilizado por isso. Agora, agora mesmo tem alguém sendo humilhado por estar longe de sua casa. Olha bem porque no próximo minuto mais injustiça estará sendo feita. Escute bem os soluços de alguém pedindo pelo amor de Deus para pararem... Esta sentindo o cheiro? É melhor ignorar.

Caso você precise atravessar alguma fronteira escute isso que tenho para lhe dizer: olhe bem nos olhos de quem quer que esteja ali. É seu direito ir para onde vai! É seu direito caminhar por qualquer lugar desse planeta! Não sinta medo, ou não lhe dê muita atenção, porque são como cães treinados para farejar isso e te acusar. Não importa se você é inocente, isso é um mero detalhe para eles. Então tenha isso claro na sua cabeça: é seu direito andar por qualquer lugar e do modo que lhe parecer melhor!

Sabe, pensando melhor, o filme é bom sim. Poderia ser mais duro na minha opinião, mas o Jean não precisa disso. Como disse, gostaria que fosse diferente, mas não é. Entretanto isso não quer dizer que um dia não possa ser. Talvez a indignação seja menor um dia, mas até lá, como diz uma canção de Violeta Parra, só peço a Deus que não me deixe ser indiferente.Que um dia poderemos ser como o Pequeno Príncipe explorando mundos distantes e indo buscar o que nosso coração desejar.

A utopia que se faz nos tantos passos dados até agora. Que todas as história são dignas de serem contadas. Que o mundo que muitos pensam ter sido sempre assim, na verdade nem sempre foi, que mentiram pra gente! Que a história não acabou e como dizem os Zapatistas, a luta é como um círculo, que pode começar em qualquer ponto, mas nunca termina. Que se olharmos de perto, todos querem apenas um pouco de amor, para compartilhar, para ser útil e sonhar. Que o ódio pode ter nos feito começar, mas será o amor que nos fará parar.

Quando sai do cinema fiquei pensando em muitas coisas, com o peito apertado e refletindo também o que 10 minutos podem fazer com a gente. Eu nunca entro depois que a sessão começa. Ainda bem que entrei e me dei conta de certo modo que o ressentimento vai ser superado por nós e aqueles que fizeram tanto mal, como nos ensina a ética ubuntu, se darão conta que fazem esse mal primeiramente a si mesmos. A sabedoria mesmo sendo apenas um ideal, e no caso da história do Jean, com dor e tragédia, não será esquecida por que pode nos dizer coisas importantes de alguém que conhecemos.




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