O ABECEDÁRIO DE GILLES DELEUZE
CP: Vamos à letra V. V de Viagem. É a demonstração de que um conceito é um paradoxo, porque você inventou um conceito que é o nomadismo, mas você odeia viajar. A esta altura da nossa entrevista, podemos dizer que você odeia as viagens. Por que as odeia?
GD: Não odeio as viagens, odeio as condições em que um pobre intelectual viaja. Talvez se eu viajasse de outra maneira, eu adorasse viagens. Mas entre os intelectuais, o que quer dizer viajar? É fazer uma conferência do outro lado do mundo com tudo o que implica antes e depois: falar antes com pessoas que o recebem, falar depois com pessoas que o ouviram. Falar, falar... A viagem de um intelectual é o contrário da viagem. Ir para o outro lado do mundo para falar o que poderia falar em casa e para ver gente antes e depois de falar. É uma viagem monstruosa. Assim, é verdade que não tenho simpatia por viagens. Isso não é um princípio. Não pretendo ter razão, mas eu fico pensando: "O que existe na viagem?". Há sempre um lado de falsa ruptura. Este é o primeiro aspecto. O que torna a viagem antipática para mim? Primeiro é o fato de ser uma ruptura barata. Eu sinto exatamente o que dizia Fitzgerald: "Não basta uma viagem para haver uma ruptura". Se querem ruptura, faça outra coisa que não seja viajar. As pessoas que viajam muito têm orgulho disso e dizem que vão em busca de um pai. Há grandes repórteres que fazem livros sobre isso. Foram ao Vietnã, Afeganistão, etc. e dizem friamente que sempre estiveram em busca de um pai. A viagem me parece muito edipiana neste sentido. Não, assim não dá. A segunda razão é... Há uma frase maravilhosa que me toca muito, de Beckett, que faz um de seus personagens dizer o seguinte: "Somos idiotas, mas não ao ponto de viajar por prazer". Esta frase me parece totalmente satisfatória. Sou idiota, mas não ao ponto de viajar por prazer. Isso não. E o terceiro aspecto da viagem... Você falou em nômade. Sim, os nômades sempre me fascinaram, exatamente porque são pessoas que não viajam. Quem viaja são os imigrantes. Há pessoas obrigadas a viajar: os exilados, os imigrantes. Mas estas são viagens das quais não se deve rir, pois são viagens sagradas, são forçadas. Mas os nômades viajam pouco. Ao pé da letra, os nômades ficam imóveis. Todos os especialistas concordam: eles não querem sair, eles se apegam à terra. Mas a terra deles vira deserto e eles se apegam a ele, só podem "nomadizar" em suas terras. É de tanto querer ficar em suas terras que eles "nomadizam". Portanto, podemos dizer que nada é mais imóvel e viaja menos do que um nômade. Eles são nômades porque não querem partir. É por isso que são tão perseguidos. E, finalmente, o último aspecto da viagem... Há uma bela frase de Proust que pergunta o que fazemos quando viajamos. Sempre verificamos algo. Verificamos se aquela cor com que sonhamos está ali. Mas ele acrescenta algo muito importante: "Um mau sonhador é aquele que não vai ver se a cor com a qual sonhou está lá. Mas um bom sonhador vai verificar, ver se a cor está lá". Esta é uma boa concepção da viagem. Do contrário...
CP: Acha que é uma regressão fantástica?
GD: Não, há viagens que são verdadeiras rupturas. Por exemplo, a vida de Le Clézio me parece uma coisa onde se opera uma ruptura.
CP: Lawrence?
GD: Sim, Lawrence. Há muitos grandes escritores pelos quais tenho grande admiração e que têm um sentido da viagem. Stevenson. As viagens de Stevenson são enormes. Eu digo por minha conta que quem não gosta de viagens é por estes quatro motivos.
CP: Seu ódio por viagens está ligado à sua lentidão natural?
GD: Não, porque pode haver viagens lentas. Não preciso sair. Todas as intensidades que tenho são imóveis. As intensidades se distribuem no espaço ou em outros sistemas que não precisam ser espaços externos. Garanto que, quando leio um livro que acho bonito, ou quando ouço uma música que acho bonita, tenho a sensação de passar por emoções que nenhuma viagem me permitiu conhecer. Por que iria buscar estas emoções em um sistema que não me convém quando posso obtê-las em um sistema imóvel, como a música ou a filosofia? Há uma geo-música, uma geo-filosofia. São países profundos. São os meus países.
CP: Terras estrangeiras?
GD: Minhas terras estrangeiras que não encontro em viagens.
CP: Você é a perfeita ilustração de que o movimento não é locomoção, mas já esteve no Líbano, para conferências, no Canadá, nos Estados Unidos...
GD: Sim, estive lá, mas eu sempre fui levado. Hoje, não faço mais isso. Não deveria ter feito isso. Já fiz demais. Eu gostava de andar naquela época. Hoje, ando menos bem. Então, nem entra em questão. Gostava de andar. Eu fazia caminhadas da manhã à noite, sem saber para onde ia. Andava por uma cidade a pé, mas isso acabou.
GD: Não odeio as viagens, odeio as condições em que um pobre intelectual viaja. Talvez se eu viajasse de outra maneira, eu adorasse viagens. Mas entre os intelectuais, o que quer dizer viajar? É fazer uma conferência do outro lado do mundo com tudo o que implica antes e depois: falar antes com pessoas que o recebem, falar depois com pessoas que o ouviram. Falar, falar... A viagem de um intelectual é o contrário da viagem. Ir para o outro lado do mundo para falar o que poderia falar em casa e para ver gente antes e depois de falar. É uma viagem monstruosa. Assim, é verdade que não tenho simpatia por viagens. Isso não é um princípio. Não pretendo ter razão, mas eu fico pensando: "O que existe na viagem?". Há sempre um lado de falsa ruptura. Este é o primeiro aspecto. O que torna a viagem antipática para mim? Primeiro é o fato de ser uma ruptura barata. Eu sinto exatamente o que dizia Fitzgerald: "Não basta uma viagem para haver uma ruptura". Se querem ruptura, faça outra coisa que não seja viajar. As pessoas que viajam muito têm orgulho disso e dizem que vão em busca de um pai. Há grandes repórteres que fazem livros sobre isso. Foram ao Vietnã, Afeganistão, etc. e dizem friamente que sempre estiveram em busca de um pai. A viagem me parece muito edipiana neste sentido. Não, assim não dá. A segunda razão é... Há uma frase maravilhosa que me toca muito, de Beckett, que faz um de seus personagens dizer o seguinte: "Somos idiotas, mas não ao ponto de viajar por prazer". Esta frase me parece totalmente satisfatória. Sou idiota, mas não ao ponto de viajar por prazer. Isso não. E o terceiro aspecto da viagem... Você falou em nômade. Sim, os nômades sempre me fascinaram, exatamente porque são pessoas que não viajam. Quem viaja são os imigrantes. Há pessoas obrigadas a viajar: os exilados, os imigrantes. Mas estas são viagens das quais não se deve rir, pois são viagens sagradas, são forçadas. Mas os nômades viajam pouco. Ao pé da letra, os nômades ficam imóveis. Todos os especialistas concordam: eles não querem sair, eles se apegam à terra. Mas a terra deles vira deserto e eles se apegam a ele, só podem "nomadizar" em suas terras. É de tanto querer ficar em suas terras que eles "nomadizam". Portanto, podemos dizer que nada é mais imóvel e viaja menos do que um nômade. Eles são nômades porque não querem partir. É por isso que são tão perseguidos. E, finalmente, o último aspecto da viagem... Há uma bela frase de Proust que pergunta o que fazemos quando viajamos. Sempre verificamos algo. Verificamos se aquela cor com que sonhamos está ali. Mas ele acrescenta algo muito importante: "Um mau sonhador é aquele que não vai ver se a cor com a qual sonhou está lá. Mas um bom sonhador vai verificar, ver se a cor está lá". Esta é uma boa concepção da viagem. Do contrário...
CP: Acha que é uma regressão fantástica?
GD: Não, há viagens que são verdadeiras rupturas. Por exemplo, a vida de Le Clézio me parece uma coisa onde se opera uma ruptura.
CP: Lawrence?
GD: Sim, Lawrence. Há muitos grandes escritores pelos quais tenho grande admiração e que têm um sentido da viagem. Stevenson. As viagens de Stevenson são enormes. Eu digo por minha conta que quem não gosta de viagens é por estes quatro motivos.
CP: Seu ódio por viagens está ligado à sua lentidão natural?
GD: Não, porque pode haver viagens lentas. Não preciso sair. Todas as intensidades que tenho são imóveis. As intensidades se distribuem no espaço ou em outros sistemas que não precisam ser espaços externos. Garanto que, quando leio um livro que acho bonito, ou quando ouço uma música que acho bonita, tenho a sensação de passar por emoções que nenhuma viagem me permitiu conhecer. Por que iria buscar estas emoções em um sistema que não me convém quando posso obtê-las em um sistema imóvel, como a música ou a filosofia? Há uma geo-música, uma geo-filosofia. São países profundos. São os meus países.
CP: Terras estrangeiras?
GD: Minhas terras estrangeiras que não encontro em viagens.
CP: Você é a perfeita ilustração de que o movimento não é locomoção, mas já esteve no Líbano, para conferências, no Canadá, nos Estados Unidos...
GD: Sim, estive lá, mas eu sempre fui levado. Hoje, não faço mais isso. Não deveria ter feito isso. Já fiz demais. Eu gostava de andar naquela época. Hoje, ando menos bem. Então, nem entra em questão. Gostava de andar. Eu fazia caminhadas da manhã à noite, sem saber para onde ia. Andava por uma cidade a pé, mas isso acabou.
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