segunda-feira, 17 de maio de 2010

Nenhuma verdade além dos fatos.

Para algumas coisas do coração não há escolhas fáceis. Chego às vezes a pensar que nem mesmo há escolhas. Quando somos pegos pela paixão, por exemplo, não escolhemos, não decidimos isso e nossas ações nos conduzem a todo custo a nos manter próximos de quem gostamos. Casar com fulano e não com cicrano pode até nos dar certa impressão de liberdade, mas mesmo aí não podemos afirmar isso. O que quero dizer é que não se trata de elaborar uma decisão por um pensamento e por um conhecimento para acharmos que estamos fazendo uma escolha, e menos ainda que seja a certa. Sei que de algum modo isso vai contra a idéia bem presente de que sempre há uma escolha, mas explico. A compreensão é um modo de saber que nosso coração utiliza para nos levar de um lugar a outro. Conhecimento e compreensão não é a mesma coisa, embora um não exclua o outro. O equívoco é acharmos que podemos compreender por que conhecemos, quando o contrário é o mais provável. A fragmentação de nossos sentimentos começa quando acreditamos que para resolver algo dessa condição do coração devemos apenas pensar. Claro que precisamos de boa dose de razão para olhar o que sentimos, é como a coragem sem um tanto de cautela, enfrentamos de corpo e alma o perigo, mas a incapacidade de avaliar os riscos reais é maior. Já diz o dito popular que na guerra e no amor vale tudo e não se pode sair daí sem algumas perdas. Começamos, não sei quando nem como, a acreditar que é possível sim contrariar esse jargão. Guerras podem ser evitadas e o amor pode agregar mesmo quando não correspondido. Acho que muitos podem teorizar bem sobre isso, mas percebemos que erros se repetem e que nossas neuroses não nos deixam esquecer que somos humanos, demasiadamente humanos. Por que ferimos quem amamos? Por que mentimos quando nos pedem sinceridade? Por que insistimos em acreditar que podemos escolher como as coisas terminam? Por mais que saibamos que existem muitas versões do mesmo fato, que a verdade nunca pode ser única, que se somos adultos e esperamos ter capacidade de escolhas, o que acontece afinal de contas com nosso coração por viver tempos de caos? Aprendi com Lowen que enquanto terapeuta é necessário acreditar que nossos clientes vivem certa incapacidade de resolver seus conflitos, que há uma impotência e que a compulsão a repetição não pode ser superada apenas conhecendo o lugar e o tempo em que se dá a fixação ou o trauma. Primeiro que se desconfiamos que as pessoas se mantêm num determinado lugar da existência ou repetem seus erros por que querem ou simplesmente não se esforçam suficientemente começamos a acreditar que é por serem fracas, fingidas, que escolhem ficar mal pelo ganho secundário disso, são cínicas, agem de má-fé, etc. Acabou a terapia. Segundo, e já dizia Reich, não superamos um trauma ou a repetição apenas tendo consciência disso. A linguagem e a memória são fundamentais, mas superamos isso quando identificamos no corpo e na sua re-significação a experiência que te faz repetir. O corpo é a memória. Claro que pressupomos que um adulto deva ter responsabilidade por seus atos, não nego isso. A tarefa terapêutica é sempre confrontada com a questão do livre-arbitrio versus o determinismo. Ajuda a entender um bocado de coisas, mas não somos terapeutas a todo instante e nem nos relacionamos com as pessoas sempre nesse contexto. Fora daí somos confrontados de outras formas com nossas idéias sobre o amor e a repetição dos erros. Ferimos quem amamos inicialmente por que nos traímos. A traição não pode ser do outro, apesar dela acontecer na relação. Traímos a nós mesmos quando não expressamos o que sentimos. Traímos quando agimos e permanecemos com algum senso de dever ou culpa. Traímos quando assumimos o que não é nosso. Traímos, e então passamos também a ser egoístas, quando nos iludimos achando que omitir é não machucar o outro. Passamos a mentir não pela falta de caráter (apesar de às vezes ser exatamente esse o problema), mas pelo fato de sermos imaturos. Certa incompletude que não nos permite lidar melhor com a ambigüidade e o paradoxo de se relacionar. Ambigüidade por que não tem certo ou errado nos modos de se relacionar e paradoxo por que é um enorme desafio adequar segurança com liberdade. Como é duro crescer! E há momentos que não crescemos em um lugar para crescer em outro. Ingênuo pensar que vamos dar conta de tudo que pensamos de prima, que somos capazes de lidar tranquilamente com a plenitude do desejo. Vamos fracassar muitas e muitas vezes nesse esforço de coerência daquilo que pensamos com o que sentimos até se aproximarem de fato. Seremos bem sucedidos de tempos em tempos, mas teremos que saber também que iremos sucumbir algumas vezes. Não precisamos de ninguém para saber de nosso caráter, para dizer dos nossos defeitos e das possíveis qualidades, um pouco de bom senso é suficiente, mas precisamos sim de algumas pessoas especiais para nos ajudarem a entender alguns caminhos que percorremos, algumas escolhas que fizemos e alguns modos de ver que foram se construindo. Amigos de longa data, pais, irmãos, são pessoas que autorizamos a falarem com todo coração e fé sobre nossa história. E é provável que serão sinceros sem agredir. Não importa o que você tenha feito nem o que aconteceu, evite alguns encontros, afinal se ainda restar um tanto de culpa a outra pessoa vai possivelmente te bater sem dó. Não pense em reparação se ainda houver ressentimento, raiva, rancor e coisas afins. Com o fracasso não se pode fazer muita coisa, além de aceitá-lo. Nosso cansaço será reconhecido em alguns momentos e respeitado em outros, mas não podemos esperar entendimento sempre. Não sei se aprendi, mas alguém que amei e que muito me ensinou falava sempre sobre perdoar (ou não) o intolerável. Para alguns um único erro é intolerável, para outros é a sucessão desses equívocos. São como pequenos suicídios que não voltam. Pequenas mortes que fragmentam, desiludem, rompem. Não fiquemos presos nesse lugar. O bom nisso tudo, apesar das dores e dos desencontros que podem ir surgindo daquilo que um dia foi lindo, é que não é para sempre. Ninguém morre de amor, mas a vida sem ele é mesmo miserável. Compreendemos o amor em novos encontros. Novos inclusive que podem ser com a mesma pessoa. E se não for tudo bem, afinal já dizia a canção do Jorge que “se ela não lhe quer mais, arranje outra meu rapaz, pois vive mal quem não vive de amor!” O título desse post foi retirado de um filme em homenagem ao mestre Akira Kurosawa. Na verdade “Depois da chuva” foi feito por um de seus discípulos, Takashi Koizumi, Kurosawa morreu antes do início das filmagens, mas participou do roteiro. Para variar só um pouco, o filme fala de samurais. Um ronin (um samurai errante) e sua mulher buscam por um lugar no mundo para viver em paz, mas sempre acontecem muitos equívocos e as informações nunca são entendidas como seus interlocutores desejam. A frase “nenhuma verdade além dos fatos” fica no centro do dojo de um importante mestre em que o protagonista, Ihei Misawa, se encontra para um desafio. A cena é simplesmente maravilhosa! Vale mesmo a pena assistir para entender o contexto. O filme inteiro é encantador. Bom, essa questão sobre a verdade e os fatos é central na narrativa da história e na vida desse ronin. Quando julgamos alguém pelo que estamos vendo, quase não há dúvida de que essa é a verdade. Estamos vendo! Temos a tendência de avaliar os outros pelas suas ações, entretanto nos avaliamos pelas nossas intenções. O filme de Kurosawa discute isso. É um bálsamo para os corações amargurados e para deixar para trás o arrependimento. Quando nosso esforço é para abandonar a culpa, aceitar o fracasso, reverenciar quem compartilhou parte de sua vida com nós, alimentar a esperança, enxugar as lágrimas e voltar a sorrir, então tudo vale mesmo à pena e poderemos estar em um novo lugar. Reconciliar nossas contradições nos ajudará a não temer a vida. Nenhuma verdade além dos fatos para o que somos e buscamos em primeiro lugar. Caso não esteja acostumado a isso, não se surpreenda se fizer alguma bobagem antes disso acontecer. Esse texto só nasceu por conta desse reconhecimento. Aprender é isso. Nenhuma paz será possível sem a coragem para enfrentar as limitações. Dia algum é igual a outro, vida alguma é idêntica a que a precedeu. Tudo muda. Nenhum amor irá acontecer sem liberdade. Ao que me cabe aqui, hoje, agora, é deixar partir, deixar ir, para que talvez lá na frente, mas não muito longe, tudo possa ser de outro modo.

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