Ontem eu vi no noticiário que haviam deixado um bebê recém nascido em uma borracharia de beira de estrada, dentro de uma caixa de papelão com um bilhete: Se não quiser ficar, leve para uma casa de adoção. Eu sou pobre.
Não levando em conta as falas moralistas do jornalista e as lágrimas sinceras, mas, ali, sensacionalistas da enfermeira que hoje cuida do bebê, eu fiquei emocionada. O menininho era recém nascido mesmo, pequeninho e fiquei pensando como ele poderia estar se sentindo, mesmo na desorganização das sensações de um ser humano de apenas alguns dias...
Também voltei estes dias na casa da Maria Clara, a menininha de um ano e meio que foi espancada pelo pai e por isso ficou em um abrigo por cinco meses. Hoje em dia ela está em casa com a mãe e conversamos um pouco sobre o período de Maria Clara no abrigo e a sensação da mãe (e talvez de todos nós!) de que pode ter sido infinitamente difícil para a Clarinha ter perdido sua casa, sua mãe e tudo o mais. E depois ter parado, de um dia para o outro, em uma "casa" estranha, cheia de tias estranhas e mais uma bando de crianças, também tiradas de casa.
Mas este post não é sobre o Matheus (o menininho da caixa de papelão), nem sobre a Maria Clara. É sobre outro menino... que na verdade não foi tirado de casa, mas teve sua casa tirada de si. Aparentemente apenas uma diferença na ordem dos termos, mas não é só isso.
Eu senti que me tiraram minha casa. Ele disse. Eu lembrei que no primeiro ano da faculdade eu havia feito um grupo de estudos em fenomenologia com o Nichan que tinha como objetivo estudar a obra de Gaston Bachelar A Poética do Espaço. Segundo uma anotação minha na antecapa do livro, este se define por ser uma topoanálise da vivência humana através das imagens poéticas da casa. De fato o livro vai trazendo vários poemas relacionados à imagem da casa e analisando como tal imagem fala das mais diversas vivências humanas.
À porta quem virá bater?
Em uma porta aberta se entra
Uma porta fechada um antro
O mundo bate do outro lado da minha porta.
Pierre Albert-Birot
O livro começa com a afirmação de que não se trata se descrever casas e seus pormenores, mas de compreender a função original do habitar: "Porque a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo."
Como traz Bachelard, a casa nada mais é do que a imagem que podemos usar para qualquer vivência de se habitar inteiramente e de fato algum lugar. Inversamente, é também a experiência da casa-abrigo, de abrigar-se e ser abrigado que permite um habitar íntegro posterior. Ou seja: se é mais capaz de habitar algo com integridade, quanto mais experiências de abrigagem tivemos na vida.
Meu menino teve sua única experiência de casa de verdade tirada de si. Depois, um bando de meias-casas, muitas delas, umas atrás das outras, incessamente. Díficil mesmo de habitá-las.
Meu menino teve sua casa roubada, foi-lhe tirada quando a havia encontrado, quando começava a experenciar a intimidade do espaço, a circulação livre e segura pelos caminhos... como então ele pode habitar de forma tranquila, senera e íntegra os lugares de hoje em dia? Como pode experimentar de forma íntima e entregue os lugares-casa, os lugares-relacionamento, os lugares-si-mesmo?
Meu menino tem sonhos ruins. Quase todas as noites. Não pode dormir sem a possibilidade de sonhos intranquilos. Ironicamente é o próprio Bachelard que explica que a casa tudo tem a ver com a possibilidade de sonhos belos: "Nessas condições, se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da casa, diríamo: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz."
Sonhei com um ninho em que as árvores repeliam a morte.
Adolphe Shedrow
Eu queria muito que o meu menino pudesse ter sonhos bonitos e dormir tranquilamente. Queria que pudesse ter alguma tranquilidade no habitar os espaços. Que pudesse ser um pouco mais forte, nos dizeres de Guimarães: aquele que pára quieto, permanece. Mas talvez não seja assim nunca. Talvez o meu menino passe mesmo a vida indo dos lugares em que vai. Nem sequer podendo partir do lugar em que vive. E ir do lugar em que se vai é uma repetição da mesma coisa, não ajuda a mudar nada.
Uma das poucas coisas que eu lembrava do grupo de estudos sem consultar anotações ou mesmo o próprio livro era a idéia de que só se sai de verdade de algum lugar em que se esteve. Que é preciso aterrar para dar um passo, que é preciso habitar para partir. O meu menino não parte, ele não muda de lugar, ele apenas erra. No sentido do erro em si, mas também no sentido daquele que é errante: que se engana, que se equivoca, que anda ao acaso.
Eu queria dar uma casa oa menino, mas a esta altura do campeonato, quando não se é mais recém nascido como o Matheus, nem se tem um ano como a Clarinha, há que se inventar uma casa e habitá-la até mais do que quando se é criança. Há que se ter a coragem da intimidade pela primeira vez. Há que se ter a coragem, principalmente, de se habitar. De habitar-se. De habitar a casa-corpo, a casa-alma. Com suas escadas, suas poeiras, suas infiltrações e imperfeições. E dai, sim, quem sabe, poder sair por ai. De verdade.
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