terça-feira, 31 de julho de 2007

Entrevista para ANA


Dei uma entrevista para a Agência de Notícias Anarquistas - ANA.
Falamos bastante sobre o Japão.
Esta aqui na integra a primeira parte. Quando sair a segundo volto a publicar.
Abraços.
Tchau!


"Chega a dar náusea como os japoneses absorvem o lixo da sociedade de consumo nos moldes estadunidense"

A frase acima foi dita pelo anarquista Alessandro Campos, um brasileiro de São Paulo, que atualmente mora no Japão, na cidade de Ogaki. Ele está lá há 4 meses. Por outro lado, com uma sensação de contrastes entre o "moderno e o tradicional", Alessandro exalta a quantidade de bicicletas nas ruas japonesas. "As bikes estão por todos os lados. As pessoas usam como lazer e transporte. Crianças e velhos, gente engravatada ou com salto alto, estudantes", diz. Na entrevista que concedeu à ANA - dividida em duas partes - ele discorre sobre outros temas pertinentes ao "universo anarquista", como meio ambiente, alimentação, medicação, xenofobia, prisões... Tudo como tema central o Japão, sob um olhar libertário e "estrangeiro". Confira a seguir a primeira parte da entrevista.

Agência de Notícias Anarquistas > Vamos começar essa entrevista assim: faz de conta que alguns dos seus amigos estão indo para o Japão, como você apresentaria a cidade que atualmente mora para eles, Ogaki?

Alessandro Campos < Ogaki é um lugar relativamente pequeno. Uma cidade com um pouco mais de 140 mil habitantes. Um local bem antigo e com importante papel na história do Japão. Está bem próximo da região de Sekigaraha, onde teve a importante batalha de Sekigaraha, quem leu Musashi vai saber... (risos) Que definiu os rumos da história do Japão por pelo menos 3 séculos desde 1600 quando teve início o período não oficial do xogunato onde os samurais tiveram importante destaque. Aqui também foi onde o poeta Bashô viveu seus últimos anos. Existe uma expressiva comunidade de latinos, principalmente de brasileiros e peruanos, mas também há chineses. É comum encontrar pessoas falando seus respectivos idiomas nas ruas. Acho que vale dizer que sempre que alguém chega aqui fica impressionado com o contraste entre a alta tecnologia (por exemplo, andar no shinkansen, ou o trem bala) e o que está preservado desse passado que acabei de falar. Tudo está muito organizado, funcionando pontualmente e as pessoas de um modo geral são bastante educadas. Muitas e muitas bicicletas e muitos e muitos guarda-chuvas. Isso é interessante. Em dia de chuva você sempre encontra um guarda-chuva que pode usar deixado em alguma estação ou supermercado, como se passasse de mão em mão. E com a bicicleta é a mesma coisa. Um dia fui sair com a minha bicicleta e descobri que pegaram ela "emprestada", deve estar em alguma estação de trem por aí esperando por alguém. (risos)
Mas também pode ficar bastante surpreso com o nível de consumo em que vivem os japoneses aqui. A cidade possui 3 shopping centers e tem mais um sendo construído. Eles aprenderam bem a cartilha do tio nazi sam e seu "american way of life". Chega a dar náusea como os japoneses absorvem o lixo da sociedade de consumo nos moldes estadunidense. Salta aos olhos como tudo é tão descartável e volúvel.

ANA > Muitos guarda-chuvas? Quer dizer que aí chove mais que São Paulo, capital? (risos)

Alessandro < Se chove mais eu não sei, mas agora que estamos no verão sempre é bom ter um guarda-chuva por perto...
Eu não sei desde quando é assim aqui, mas se começa a chover e você vê um guarda-chuva pendurado em algum lugar não fique inibido, pode usá-lo e depois deixar em algum outro lugar para outra pessoa poder usar também.

ANA > Diz-se no Brasil que o lixo no Japão é um “luxo”, que podemos encontrar geladeiras, televisores, computadores etc., tudo seminovo. É verdade? (risos)

Alessandro < É verdade. Não que isso ocorra por toda parte, mas você pode encontrar essas coisas jogadas por aí sim, ou ainda de pessoas que estão tentando se desfazer de algumas coisas porque querem algo novo. Você não pode simplesmente colocar seu lixo do lado de fora e esperar que ele desapareça. Há coleta seletiva e dependendo do volume do "lixo" você mesmo deve dar um jeito nisso. Por isso às vezes você encontra essas coisas na rua. A manutenção também acaba sendo inviável de tão cara, é mais fácil comprar outro. Lógica estúpida da sociedade de consumo, afinal você precisa fazer a economia se movimentar e estar por dentro das novidades.

ANA > Quanto à bicicleta, então podemos afirmar que a relação dos japoneses com a “magrela” é muito mais intensa que no Brasil, que é um meio de lazer e transporte que faz parte do dia-a-dia do japonês?

Alessandro < Isso realmente é interessante. As bikes estão por todos os lados. As pessoas usam como lazer e transporte. Crianças e velhos, gente engravatada ou com salto alto, estudantes... Em toda estação de trem há um bicicletário com espaço para centenas, às vezes milhares delas. E com a bicicleta acontece o mesmo que com o guarda-chuva, vai passando de mão em mão, mas com menos freqüência, já que nem sempre é algo barato e fácil de ter uma boa bike, então você a tranca, apesar de ser algo muito acessível. Dê uma olhada nisso pra ter uma idéia: www.photopassjapan.com/jitensha

ANA > E há respeito aos ciclistas? Ciclovias... Como é essa relação ciclistas e motoristas no Japão?

Alessandro < Existem muitas ciclovias sim e a calçada geralmente é dividida para ciclistas e pedestres. Caso falte espaço, você pode ir pra rua e os carros devem manter uma distância segura de você. As auto-escolas são obrigadas a dar essa orientação, mas as pessoas no geral são muito cautelosas e existe uma grande preocupação com a segurança física das pessoas na rua. Caso haja algum acidente com ciclista, o motorista do carro na maioria dos casos já é considerado culpado. Isso porque a bicicleta está em situação de maior vulnerabilidade. O motorista deve arcar com todos os gastos que o ciclista venha precisar, como médico, reparo da bicicleta etc. No caso de um carro matar um ciclista, legalmente o motorista deve pagar uma considerada indenização para a família da vítima, além da suspensão imediata da habilitação. Caso esse ciclista seja a pessoa responsável pelo sustento da família, o motorista deve pagar indenização vitalícia ou no caso de dependentes jovens, até eles completarem a maior idade, que aqui é aos 20 anos. E tem que pagar mesmo, se não leiloam o carro, a casa ou qualquer outra coisa que a pessoa tenha. A questão do direito penal aqui é bem diferente do Brasil. Você ficou sabendo do ministro que cometeu suicídio mês passado porque foi acusado de corrupção? Às vezes quase da vontade de gostar do Estado quando você vê políticos do mais alto escalão da burocracia estatal sendo julgados e condenados há anos e anos de prisão... (risos)

ANA > E verde, existem muitas áreas verdes em Ogaki?

Alessandro < Sim, há muitas áreas e parques pela cidade, a maioria pequena e é interessante ver como as pessoas às ocupam nessa época do ano. Muitos músicos vão para esses parques ensaiar. Já conheci alguns japoneses exatamente nesses lugares quando estava tocando meu berimbau e eles me perguntando que diabos é isso!

ANA > Na questão de meio ambiente, o que te desagrada, que acha uma aberração no Japão?

Alessandro < Sem dúvida o consumo e a produção de lixo. Até que existe uma educação interessante na reciclagem do lixo, mas a produção é tanta que não sei dizer como fica. A idéia de reduzir e reutilizar praticamente não existe. Toda prefeitura orienta como fazer a separação do lixo, mas nenhuma palavra para reduzí-lo, apesar de existir um sistema de etiquetas oferecidas por residência para colar em cada saco de lixo e se você extrapola essa quantidade deve comprar mais. Uma tentativa de limitar a produção como um todo, mas pouco eficiente na minha opinião, já que é muito simples ter novas etiquetas. Veja só como é: você vai ao supermercado e compra um pacote de doces. Esse pacote é uma embalagem maior que contêm uma embalagem menor. O doce está dentro de uma embalagem menor que embrulha apenas ele. Cada doce está embrulhado individualmente. No caixa a pessoa te dá mais um saco plástico para você levar pra casa. E em casa vai tudo para o saco de lixo. Com exceção do lixo reciclável, tudo é incinerado, inclusive o plástico. E assim vai, com praticamente tudo.

ANA > Há no Japão também essa busca desenfreada por energias?

Alessandro < Como em toda parte o Japão não foge a regra. O petróleo ainda é o que predomina, principalmente pelo fato do Japão não contar com usinas hidroelétricas e nenhum tipo de extração mineral significativa. O lobby automobilístico ainda insiste no uso de gasolina comum e outros derivados.
Não sei bem como está agora, mas existiam muitos projetos para uso de energia nuclear, principalmente para fins militares, já que o Japão nunca saiu dos seus impasses com a China e a Coréia do Norte. Mas o uso de energia nuclear é preocupante. Quase 30% da energia aqui vem de usinas nucleares.
Acontece que em um país com tantos registros de terremotos e catástrofes naturais, como garantir que o uso disso seja seguro? No dia 16 de julho a província de Niigata sofreu um terrível terremoto que destruiu 900 casas, estradas, ferrovias, deixando mais de 25 mil casas sem energia elétrica e outras 35 mil sem água e gás. 10 pessoas morreram e mais de 12 mil foram evacuadas por conta do vazamento da usina de Kashigawazaki-Kariwa. Essa usina é a maior do mundo por capacidade de produção. Existem 55 usinas nucleares no Japão. Uma grande quantidade de água contaminada vazou para o mar do Japão e os responsáveis pela usina simplesmente pediram desculpas pelo transtorno dizendo que o terremoto foi maior do que eles esperavam e não estavam preparados para tanto. O terremoto foi de 6,8 na escala Richter.
Sei de algumas iniciativas com o uso do lixo, combustível vegetal, energia solar e eólica, mas não me parece algo muito expressivo.

ANA > No Brasil você estava ligado à luta antimanicomial. No Japão existe tal movimento?

Alessandro < Não há nada parecido. Aqui ainda o modelo de atendimento em saúde é muito hospitalocêntrico, ou seja, encarceramento do "doente" e o médico como figura central do tratamento. A psicologia e a psiquiatria deixam muito a desejar, não consigo imaginar um movimento como o do Brasil que reúne não apenas usuários dos serviços e seus familiares, mas também os profissionais. O Movimento da Luta Antimanicomial do Brasil acabou sendo para o mundo todo uma importante referência de transformação nesse sentido. A questão de movimentos sociais no Japão ainda é uma incógnita para mim. Mesmo em outras questões. Existem grupos de direitos humanos, ecologistas, sindicalistas, grupos humanitários, um povo mais de esquerda mesmo que reformista, mas ainda não sei se existe algo que poderia ser chamado de movimento social.

ANA > Atualmente as empresas farmacológicas mais importantes do planeta são dos Estados Unidos, Europa e Japão, controlam mais de 50% do mercado mundial dos medicamentos, da chamada “medicação da vida". No Brasil há farmácias praticamente em cada esquina, no Japão acontece o mesmo?

Alessandro < A mesma coisa. As farmácias parecem mais supermercados do que um lugar para medicamentos. Por outro lado existe uma grande contradição para conseguir alguns medicamentos, como por exemplo, anticoncepcionais. A venda de anticoncepcionais é feita somente com prescrição médica, todo mês a mulher deve ir até um médico para adquirir uma cartela determinada por ele. Isso acaba sendo uma forma de manter o controle sobre a mulher e não lhe possibilita muita autonomia. O que às vezes é difícil de entender é que o aborto no Japão é legal em todos os casos, mas nessa situação talvez podemos atribuir isso ao fato do Japão não ser um país cristão e também a herança do período pós-guerra. Mas voltando a questão da indústria, é difícil como em todos os lugares, conseguir dados e informação séria sobre isso. Tudo aparece como uma coisa positiva do "progresso" e do desenvolvimento capitalista. Quem não se lembra do caso do laboratório japonês que tentou patentear o cupuaçu e depois o açaí? Ou então da quantidade de terras que eles vêm comprando, principalmente no pantanal mato-grossense por conta da água? Os japoneses batem palmas e se orgulham de fazer parte do G8, mas a maioria da população ignora o fato de fazer parte dos que mais exploram e destroem o planeta.

ANA > Quer dizer que o japonês consome muito remédio?

Alessandro < Acredito que sim, ainda mais se considerarmos os altos índices de suicídio e stress. A pressão para conseguir ascensão social é muito grande e desde pequenas as pessoas são cobradas nisso. Não são raros os casos de crianças que cometem suicídio, apesar disso estar também ligado a maus-tratos na escola. Por um lado à dedicação ao trabalho faz com que tudo seja feito da melhor maneira possível, com grande senso de disciplina e organização, mas por outro isso provoca muitas formas de patologias, já que as pessoas dedicam pouco tempo ao lazer e atividades mais lúdicas. A alimentação também não ajuda, cada vez mais as pessoas se alimentam em fastfoods, cheios de carnes e gorduras.

ANA > Estresse, depressão, desequilíbrios psíquicos, são enfermidades, patologias comuns no Japão?

Alessandro < Foi como disse: a pressão social é muito grande. As pessoas passam muito tempo dedicadas aos estudos e ao trabalho e quando não conseguem os resultados esperados acabam desenvolvendo muitas patologias. O fato de ser uma cultura que não expressa sentimentos de forma tão direta e explícita, a frustração seja ela grande ou pequena, acaba não sendo trabalhada. Não sei te dizer a quantidade de pessoas atingidas por esses males, mas com certeza não é pouca. Essas são coisas que atingem o mundo inteiro hoje, um problema planetário mesmo e acredito que em sociedades que valorizam a competição, a hierarquia e outras maneiras de disputa e desigualdades, desenvolvem isso em um ritmo acelerado. Primeiro pelo preconceito que há em relação às pessoas que passam por períodos difíceis e necessitam de algum tipo de apoio psicológico, e depois por falta de políticas públicas de saúde mental.
No caso do Japão é normal pessoas, principalmente em fábricas como as que os brasileiros trabalham, realizarem jornadas de trabalho de 12, 15 horas diárias, seis dias por semana. Elas vão para suas casas apenas para dormir. Quando apresentam algum quadro patológico desses ou de insônia, pânico, fobias, que é bem comum, tentasse fazer com que o trabalhador peça demissão e assuma o problema como algo individual. O capitalismo gera patologias graves e isso não pode ser ignorado.

ANA > Provavelmente por ignorância imaginava que no Japão existisse um hábito alimentar mais saudável, mas pelo que diz não, que a industrialização da alimentação ganha espaço. Fale um pouco mais desse panorama hoje no Japão, dessa tal “alimentação moderna”.

Alessandro < Cada vez mais as pessoas gastam seu tempo trabalhando. Naturalmente elas comem muito mais fora do que em casa. Possuem pouco tempo para almoçar e jantar, seja no trabalho ou em casa, ou ainda quando saem de um e vão para o outro não estão dispostas a preparar sua própria comida ou mesmo espera por isso. Acabam preferindo a agilidade das redes de fastfood ou lugares que oferecem pratos prontos, mas nada saudáveis. Hoje é comum as casas japonesas terem fogão de apenas uma boca, no máximo duas. Parecem mais com um fogareiro de acampamento! Acho que fogão de seis bocas nem existe aqui... (risos) Não sei bem se sempre foi assim, mas assim é mostrado agora.
Os japoneses comem naturalmente menos do que nós. Fico pensando se ainda existe um sentimento com relação às inúmeras épocas de escassez que eles viveram, foram muitas guerras e desastres naturais que não permitia o excedente de comida. Agora isso está mais distante e eles também querem experimentar outras coisas, basta pagar.

ANA > É comum encontrar japonês obeso?

Alessandro < Não vejo muitos japoneses obesos, mas claro que existem. O hábito da bicicleta acaba fazendo muito bem também e eles comem muito arroz sempre. O Japão também vive a ditadura da beleza magra difundida pelos meios de comunicação de massa. Isso é uma coisa a ser considerada, mas ainda não saberia te falar bem como ela é desenvolvida aqui.

ANA > E um vegetariano come bem no Japão? Ouvi dizer que os preços das hortaliças e frutas no Japão são altíssimos. É isso mesmo?

Alessandro < Ser vegetariano no Japão é um tormento constante! Desista de comer em mais da metade de todos os restaurantes que você pensar em ir... (risos) Muitas vezes eu fui para um restaurante comum ou mesmo um lamen ya (que é uma casa de macarrão tipo miojo, muito popular aqui, onde você come muito por pouco) e não encontrei nada para comer, nem batata frita... (risos) Vegan não quero nem pensar... Desista de 80% dos restaurantes. Os japoneses comem muita carne e preparam tudo com ela. Às vezes só mesmo sushi de pepino e missôshiro (caldo de pasta de soja com tofu).
Um vegetariano só vai comer bem se for em um restaurante vegetariano, que por sinal são poucos (em Ogaki não tem nenhum, mas na região de Nagoya tem uns 2 e outros 3 com algumas opções veg. no menu) ou se você fizer sua própria comida. Você pode escolher melhor as coisas e prepará-las em uma quantidade razoável. Quanto ao preço das coisas não dá pra comparar. No geral são bem caras sim, mas as pessoas possuem um poder aquisitivo melhor. Mesmo assim existem alimentos que são caros pra todo mundo, frutas como melancia e melão podem chegar a custar meio dia de trabalho de um operário. Uma única maçã pode chegar a custar 5,00 reais. Frutas como mamão, pêra, côco, enfim, frutas tropicais, quase não existem frescas, só em conserva e custam o olho da cara. O problema também é a variedade e a gente sempre acaba comendo as mesmas coisas. Muita banana e muita salada de alface e tomate... (risos) O bom é que hoje existem algumas lojas que importam produtos do Brasil e às vezes dá pra comprar umas polpas de suco do tipo cupuaçu, goiaba, graviola, frutas do norte e nordeste para matar a saudade!

ANA > Apesar de haver acordos internacionais que proíbem a caça de baleias, sabe-se que o Japão, representados na indústria da pesca, mata centenas, quiçá milhares de baleias por ano, inclusive outros mamíferos marinhos, como golfinhos, lobos marinhos, etc., tudo para consumo alimentar. Um tempinho atrás eu vi um vídeo chamado “Earthlings” que me deixou chocado e revoltado, que mostrava a matança absurda de golfinhos no Japão, e depois a carne era vendida como se fosse de baleia. Há no Japão uma luta efetiva contra essa estupidez, ou a sociedade japonesa encara tudo como “tradição cultural”?

Alessandro < Isso sobre tradição cultural é sempre um desafio, né? O problema nem sempre é identificar de fato as raízes e a justificativa de se preservar uma tradição, mas saber quem é que ganha com isso. A necessidade realmente é coletiva ou é um interesse particular? Acho que o caso da matança de baleias e outros animais são assim. Pouca gente ganha com isso aqui. Não é o pequeno pescador que vai para o alto mar atrás desses animais. São grandes navios, alguns bem aparelhados com sondas de última geração e grandes arpões eletrônicos. Uma indústria que poucos controlam. Isso é algo muito caro também e bastante restrito. As pessoas não chegam no Japão e dizem: "ei, eu quero comer baleia, onde tem?" Não tenho certeza, talvez em algum pequeno vilarejo costeiro existam pessoas que tenham sim uma ligação ancestral com esses animais e se alimentem deles, mas a verdade é que o Japão como um todo não tem. Não há justificativa comunitária ou nativa como eles insistem em dizer.
Quando o governo tenta justificar isso e se faz valer de um discurso com peso nas suas tradições, ele o faz de maneira hipócrita, dissimulada e bem cínica. Eles tentam então tirar proveito de várias formas. As pessoas ainda têm uma visão muito estereotipada dos japoneses e de sua cultura. Eu não escapei disso. Ficamos imaginando que existe um código samurai, uma honra cheia de sangue azul por todos os lados. Hoje, apesar do pouco tempo que estou aqui, vai ficando claro pra mim que o que funciona pra valer aqui é justiça penal, o direito. Claro que existe uma moral e um juízo de valor bem peculiar, um modo de viver em sociedade muito particular, mas o fato das leis serem aplicadas com muito mais rigor faz as pessoas se comportarem de um jeito mais "civilizado". As pessoas aqui fazem muitas coisas erradas e se tivessem oportunidades fariam muito mais. Se tem algo que corresponde um pouco melhor a realidade é a preocupação excessiva com a opinião pública, com o que "os outros vão dizer", e isso faz com que todos tomem muito cuidado com o que quer que façam. Precisamos levar isso em consideração para ver um pouco melhor como o controle da sociedade pelo Estado atua. O governo japonês chega ao absurdo de justificar a matança de baleias dizendo que elas causam danos para a pesca porque se alimentam de outros peixes menores.
Infelizmente eu não sei muito como está atualmente essa questão da pesca de golfinhos e baleias aqui. O pouco material que é publicado está em japonês e sempre é a favor da pesca. O Greenpeace é quem chega a fazer algumas denúncias mais bem articuladas. Todos sabem que as baleias quase se extinguiram e que se fosse pelo Japão e pela Islândia isso teria acontecido. A maneira que os japoneses encontraram para não parar com a pesca, burlando os acordos internacionais, foi a justificativa do uso científico, mas isso também não é respeitado. Na região de Tóquio sei que existem cerimônias públicas para a limpeza e a preparação da baleia para consumo. Eles chegam até a distribuir para as crianças das escolas da região numa tentativa de ganhar a opinião pública e educar as futuras gerações para não acharem isso errado.

Nenhum comentário: